VOCÊ JÁ CATOU PEQUI?
- teccernusacer
- 5 de set. de 2023
- 7 min de leitura
por Vera Lúcia Gonçalves Ferreira

O Cerrado é uma região de savana tropical da América do Sul, incluindo grande parte do Brasil Central, parte do nordeste do Paraguai e leste da Bolívia, sendo o segundo bioma brasileiro em extensão. Seu território ocupa aproximadamente 24% do território brasileiro, em uma área total estimada de 2.036.448 km². Sua área nuclear abrange o Distrito Federal e dez Estados: Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Tocantins, Maranhão, Bahia, Piauí, Minas Gerais, São Paulo e Paraná, somando aproximadamente 1.388 municípios.


Distribuição do bioma Cerrado no Brasil, representado em cor laranja. Fonte: Mapa Biomas do Brasil. Sistema de referência: SIRGAS 2000.
O território cerratense faz limite com outros quatro biomas brasileiros: ao norte, encontra-se com a Amazônia, a nordeste com a Caatinga, a sudeste com a Mata Atlântica e a sudoeste, com o Pantanal. Particularmente nessas áreas de contato, chamadas de ecótonos[1], a biodiversidade é extremamente alta, com elevado endemismo de espécies.
Uma das características distintas do Cerrado é a presença de diferentes zonas de contato biogeográfico, conferindo-lhe um aspecto ecológico único. A biogeografia, subcampo da Geografia, estuda a distribuição dos seres vivos na superfície do globo, tanto no passado quanto no presente. Ela revela a composição das floras e faunas vivas ou fossilizadas, os fatores que determinam essa composição e suas consequências. Essa singularidade é evidente no Cerrado.
Devido à sua vasta extensão territorial, o Cerrado abrange um mosaico de diferentes tipos de vegetação. Embora seja predominantemente composto por formações savânicas, apresenta uma notável variabilidade espacial de fitofisionomias (JUNIOR et al., 2021). Suas formações vegetais abrangem desde vegetações campestres, com predominância de gramíneas, até matas de galeria, caracterizadas por três estratos arbóreos distintos e uma complexidade estrutural típica das florestas tropicais. Essa diversidade de ambientes e a heterogeneidade nos atributos ambientais do Cerrado contribuem para uma maior riqueza e diversidade biológica (DIEGUES, 1999). Por esta razão, ele é reconhecido como um importante hotspot[2] de biodiversidade.

Fitofisionomias do Bioma Cerrado. FONTE: (Ribeiro, Valter, 2008).
A diversidade de fitofisionomias é resultante da diversidade de solos, de topografia[3] e climas. A alta diversidade de ambientes se reflete em uma elevada riqueza de espécies, com plantas herbáceas, arbustivas, arbóreas e cipós, totalizando 12.356 espécies que ocorrem espontaneamente em uma flora vascular nativa (pteridófitas e fanerógamas), somando 11.627 espécies (Mendonça et al., 2008), sendo que aproximadamente 44% da sua flora é endêmica (Ministério do Meio Ambiente PPCerrado, 2014, p. 26). Dentro de toda essa biodiversidade encontramos o Pequizeiro, através do qual conseguimos colher o pequi, conhecido popularmente como o “ouro do Cerrado”. O pequizeiro (Caryocar brasiliense) é uma árvore nativa da família Caryocaraceae, amplamente distribuída pelo Cerrado do Brasil Central e áreas adjacentes da Bolívia e Paraguai (Dijigow, 2021).

A floração do pequizeiro. FONTE: (Dijigow, 2021)
A árvore do pequi pode atingir até 10 metros de altura, o pequi-anão, por sua vez, é uma espécie arbustiva do fruto. A madeira do Pequizeiro, de cor amarelada, é utilizada na construção e confecção de objetos. Quando queimada, suas cinzas são popularmente utilizadas para fazer sabão caseiro.
As folhas, que podem medir até 20 cm, são formadas por três folíolos recobertos com pelos curtos, que são utilizadas para a produção de adstringentes, produtos dermatológicos utilizados na limpeza de pele.

Pequizeiro adulto. FONTE: (Dijigow, 2021)
As flores são grandes e chamativas, com cinco pétalas brancas e longos estames. São polinizadas principalmente por morcegos, mas também são visitadas por abelhas grandes, beija-flores e mamíferos pequenos. A floração ocorre entre os meses de agosto e novembro.
O fruto do Pequizeiro é drupáceo, oleaginoso e aromático. A frutificação ocorre no período chuvoso entre os meses de outubro e fevereiro.



Fases: do botão aos frutos. FONTE: (Dijigow, 2021)
No Centro Oeste brasileiro ocorre um período de estiagem – lê se período de seca - que vai do mês de maio a setembro, período da floração e o crescimento dos frutos do Pequizeiro. É prática cultural do centro goiano a reunião de amigos e familiares na coleta desse alimento tão cobiçado. Na busca pelo pequi, ao adentrar o Cerrado, os grupos deparam se com a beleza desse jardim biodiverso, um mosaico cênico que causa admiração. Os sons dos pássaros e outros animais formam uma orquestra natural.
Partindo desse viés, consideramos o pequi como uma fruta que ultrapassou suas peculiaridades alimentícias, influenciando o modo de vida dos indivíduos. É símbolo de resistência do Cerrado, território-bioma que ainda resiste às investidas do agronegócio. É tamanha a importância desse fruto, que sua comercialização e abate é proibida em forma de lei, através da a Portaria nº 54, de 05 de março de 1979 do Ministério da Agricultura (BRASIL, 1979).
A coleta do pequi é realizada a partir dos frutos que caem no chão, indicando sua maturidade. Os desavisados que o colhem diretamente do Pequizeiro experienciam sabor amargo, que ”trava” a boca. O sabor inigualável do pequi é conhecido da culinária goiana desde os tempos da colonização. De sabor marcante e peculiar, é consumido cozido, puro, no preparo de arroz, de licores, conservas, doces e sorvetes. Seu óleo, extraído da polpa e amêndoa, é utilizado no preparo de alimentos, bem como fabricação de cosméticos e até mesmo na produção de biodiesel (Dijigow, 2021).
O pequi, como dito, para além de fruto, é ligado culturalmente à História do que os colonizadores costumavam denominar sertão, essa vasta área interiorana do Brasil, o enorme desconhecido sobre o qual lendas e imaginários eram criados. Sertão esse que é ligado à tradicionalidade, aos costumes sertanejos, música raiz, aos sentimentos de comunidade e compadrio (VICENTINI, 2016). Por isso, o Pequizeiro também é símbolo de resistência dos menos favorecidos frente às desigualdades promovidas pela “modernização conservadora”[4] do Cerrado, aqui “(...) uns disputam o poder de concentrar riquezas e de explorar mais e mais a terra e a mão de obra, outros disputam um lugar ao sol, para poder ter o direito de ser” (PELÁ e MENDONÇA, 2010, p. 64).
Recentemente, a Assembléia Legislativa de Goiás aprovou a lei nº 22.229 de 24 de agosto de 2023 (GOIÁS, 2023), que institui o dia estadual do pequi, a ser comemorado em 23 de agosto. Desse modo, também incorporado ao calendário cívico, cultural e turístico do Estado. É importante que iniciativas como essa valorizem a cultura goiana, mas para além do mero discurso, se tornem projetos que busquem uma interligação entre a cultura e a natureza, dando origem a uma educação ambiental que busque preservar o Cerrado, bioma de todos, berço das águas brasileiro.
Dito isso, saudamos os amantes de pequi e valorizamos sua presença nos símbolos culturais de nosso povo brasileiro. E você, já catou pequi?
NOTAS
[1] Por ecótonos entendemos as regiões de biomas que fazem contatos com outros biomas, em uma relação de fronteira. Ali, comunidades ecológicas, a fauna e flora estão em regiões de transição ambiental. [2] O Cerrado é um dos 34 hotspots mundiais. Hotspot é uma região com grande biodiversidade e endemismos, e que se encontra em um processo de degradação (Ganem et al., 2008, p. 3). [3] A Chapada dos Veadeiros, em Goiás, possui altitudes que vão de 200 m até cerca de 1.600 m. [4] Goiás, apesar das inovações tecnológicas e da expansão da fronteira agrícola, tornou se um dos principais Estados a contribuir na produção do agronegócio, porém, essa modernização agrícola não veio sem custos. Enquanto poucos se beneficiam com essa nova dinâmica capitalista, muitos sofrem com as desigualdades produzidas por esse novo esquema, por isso enxergamos o Estado na perspectiva da “modernização conservadora” (MELO; VILELA, 2015)
REFERÊNCIAS
BRASIL. Ministério da Agricultura. Portaria nº 54, de 05 de março de 1979. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 06 mar. 1979. Seção 1, p. 4125. Disponível em: <Portarias - Ministério da Educação (mec.gov.br)>. Acesso em: 02 set. 2023.
DIAS, Jaqueline Evangelista; LAUREANO, Loudes Cardozo (orgs.). Mães de óleos Kalunga. Cavalcante: Goiás, 2022.
DIEGUES, Antonio Carlos (Org.) et al. Biodiversidade e comunidades tradicionais no Brasil. São Paulo: Editora Da Universidade de São Paulo; São Paulo: Ministério do Meio Ambiente, Núcleo de Apoio à Pesquisa-Unicamp; Brasília: Nupaub; Brasília: Probio, 1999.
DIJIGOW, Patrícia. Pequizeiro: do Cerrado para o mundo. Escola de botânica. 18, agosto, 2021. Disponível em: <https://www.escoladebotanica.com.br/>. Acesso em: 01 set. 2023.
FURLEY, P. A.; RATTER, J. A. The central Brazilian cerrado and their development. Journal of Biogeography, v. 15, p. 97-108, 1988. Disponível em: <Soil Resources and Plant Communities of the Central Brazilian Cerrado and Their Development on JSTOR>. Acesso em: 02 set. 2023.
GOIÁS. Assembleia Legislativa. Lei Estadual nº 22.229, de 24 de agosto de 2023. Institui o Dia Estadual do Pequi em 23 de outubro. Goiânia, GO, 2023. Disponível em: <Lei Ordinária Nº 22.229/2023 - Casa Civil do Estado de Goiás>. Acesso em: 02 set. 2023.
JUNIOR, E. R. M.; SILVA, I. DE S.; SILVA, L. G. DA. Fronteiras, mineração, conflitos e pressões em terras indígenas no Cerrado brasileiro. Revista Campo-Território, Uberlândia, v. 16, n. 40 Abr., p. 115–135, 2021. DOI: 10.14393/RCT164005. Disponível em: https://seer.ufu.br/index.php/campoterritorio/article/view/58333. Acesso em: 15 jul. 2023.
MELO, Sandro Cristiano de; VILELA, Benjamin Pereira. O Cerrado no tempo da pressa e a educação ambiental na preservação de saberes resistenciais. In: LUNAS, Divina Aparecida Leonel; XAVIER, Glauber Lopes; LUZ, Janes Socorro (orgs.). Cerrado: projetos políticos, atores sociais e dinâmicos do território. Anápolis: Editora UEG, 2015. p. 189-209.
PELÁ, Márcia; MENDONÇA, Marcelo Rodrigues. Cerrado goiano: encruzilhada de tempos e territórios em disputa. In: PELÁ, Márcia; CASTILHO, Denis (Orgs.). Cerrado: perspectivas e olhares. Goiânia: Editora Vieira, 2010. p. 51-69.
PPCerrado – Plano de Ação para prevenção e controle do desmatamento e das queimadas no Cerrado: 2ª fase (2014-2015) / Ministério do Meio Ambiente, Organizador. Brasília: MMA, 2014.
Ribeiro, J. F; Walter, B. M. T. As Principais Fitofisionomias do Bioma Cerrado. In: SANO, S. M.; ALMEIDA, S. P. de; RIBEIRO, J. F. (Ed.). Cerrado: ecologia e flora v. 2. Brasília: EMBRAPA-CERRADOS, 2008.
VICENTINI, Albertina. Tal sertão qual Cerrado?. Goiânia: Gráfica UFG, 2016.

Vera Lúcia G.Ferreira é mestranda em Ciências Sociais e Humanidades pelo Programa de Pós - Graduação em Territórios e Expressões Culturais do Cerrado, da Universidade Estadual de Goiás e membro do Núcleo de Pesquisa dos Saberes Tradicionais e Ambientais do Cerrado, NuSACER ( TECCER - UEG ). Suas pesquisas se debruçam sobre O Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros como ferramenta de incentivo à preservação do Cerrado.
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3212914626950400
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