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UM FLUXO DE NARRATIVAS: OLHAR HISTÓRICO NO RIO ARAGUAIA




Wisley Micael Soares da Silva

“Você me pede, Homem, que fale de mim mesmo,

dentro da História e estórias que escreverá, estranho

caso de um mudo conversando com o dono da

palavra, numa linguagem que ninguém jamais

pronunciou, leu, escreveu ou escutou.”


Durval Rosa Borges.

Quantas são as formas de se contar uma história? E de que forma essa história terá valor significativo para aqueles que a contemplarão? Seria um rio capaz de sustentar as voltas e os desdobramentos de uma narrativa que, em medidas equivalentes, dele se beneficia e ao mesmo passo o renega? Questionamentos rápidos, que permeiam toda a construção imagética do poderoso Araguaia, palco de sonhos inalcançáveis, de guerras sangrentas e, principalmente, da expansão social ao oeste desconhecido.

O trabalho de se observar a vida sustentada ao longo dos rios pela história não se configura como uma tarefa fácil, sob certo aspecto, existem semelhanças práticas facilmente identificáveis, porém são as especificidades que abrilhantam a jornada. Talvez a filosofia atrelada ao diálogo entre as águas e as narrativas por elas “presenciadas” seja o aspecto mais sublime de se experienciar, uma amostra do que de mais belo há em estudar a história.

Nesse cenário, perceber que o mesmo rio se fez presente no alvorecer de uma sociedade, viu nascer poetas, amantes, artistas e ladrões, foi palco e ferramenta para guerras sangrentas e, no fim se manterá alheio às minucias da vida humana é algo magnífico. Para o bem ou para o mal, para o triunfo ou para a derrota, ele apenas estará lá, seguindo em direção a um futuro incógnito, abençoando todos que dele necessitam, do alto de sua benevolente majestade.

O ponto exato de divergência, para o Nilo, o Ganges, o Danúbio, o Mississippi, o Araguaia e qualquer outro rio, as memórias tão próprias que se alimentaram através dos séculos, como um catálogo dos pequenos mundos que formam um todo social.

Através dessas lentes históricas, tratar especificamente do Araguaia implica em se debruçar sobre as várias vertentes desse sistema tão próprio, agrupando narrativas e experiências a fim de viabilizar sua mínima compreensão. Uma possibilidade única de se debruçar sobre diários de viagem de Manuel Buarque e Couto de Magalhães, de peregrinar junto a Frei Gil Vilanova, de descobrir a geografia e a historiografia do majestoso Ber-ô-can 1 e maravilhar-se no processo.

Por meio das memórias serão traçados os parâmetros para a realidade, nesse

sentido, como partícipe de um sistema mais complexo, o Araguaia se fixou ao coletivo imaginário como peça de uma ampla expansão. Sob esse caráter funcional, o rio passou a ser percebido apenas como meio de se desbravar o Oeste, em uma marcha que pouco a pouco desnudava todo o território brasileiro. No entanto, ao bom observador, tratar de seus povos, de seus lagos, de sua fauna, da vida em sua pura essência, proporciona saídas mais justas a sua verdadeira relevância.

Uma tarefa intrigante, por vezes bastante arriscada, atribuir valor empírico e teórico a algo por meio de palavras, uma balança que ora pende às hipérboles intensas e às vezes se afunda em anotações deveras simplistas.

Nasce assim um novo empecilho, como ser simplista ao se tratar de algo tão majestoso? Como notas e resumos seriam capazes de revelar cada parte de um pequeno mundo tão complexo? Novamente a resposta segue de encontro às memórias, experiências e contribuições diversas que costuram os saberes, que devolvem todo o poder e a magnitude as águas que banham o cerrado brasileiro

Experiências que aos poucos ditam a tônica do “Mediterrâneo brasileiro” de Manoel Buarque (2022, p. 120), juiz de direito que por dias seguidos viveu sua plena realidade e pode junto ao Araguaia explorar as mazelas de uma região abandonada pelo Brasil. Uma busca maior que já no século XIX levava homens como Couto de Magalhães a conhecer os meandros das águas que, em suas palavras, carregavam “uma calma tão serena, como aquela que se observa no oceano visto de longe” ( 1975, p. 102). Pequenos chamarizes para aqueles que buscam conhecê-lo minimamente, portas abertas para a curiosidade, adornadas de exageros bem aplicados, um convite aos brasileiros de todas as partes, a conhecer a história das águas que banham sua própria nação. Sou o mais puro e brasileiro dos rios. Não tenho águas brotadas em chão alheio nem vou servir a estranhos e muito menos me apresso em cortar caminhos, pois corro pelos centro acariciando o dorso do Brasil e o mar está bem perto de meu berço e este bem longe do estuário onde vou morrer, não de morte natural, mas por furto de identidade. (Borges, 1987, p. 13)

São os relatos do passado e as experiências do presente chaves para a compreensão do que se espera no futuro, onde perceber a evolução dos preconceitos e violações se faz um caminho natural para a percepção das maquinações políticas vindouras. Isto posto, tratar de obras tão específicas como diários pessoais de navegação escritos a mais de cem anos auxiliam especificamente a ver o passado através de olhos no próprio passado.

Nesse sentido, Gaston Bachelard (1998) se aprofunda na construção e na propagação do saber e do relato através de uma memória própria ao indivíduo, podendo ser adaptada a realidade daquele que a absorve por meio do diálogo ou da escrita. Dessa forma, imaginar um local ou um fato narrado por outro demanda experienciar uma vivência hipotética, que necessitará de certo esforço intelectual por parte do ouvinte.

Para além das metáforas e paralelos criados através de um recorte espacial, Bachelard analisa a construção da escrita e de como essa possibilita uma conexão entre as almas dos indivíduos. “A alegria de ler é o reflexo da alegria de escrever, como se o leitor fosse o fantasma do escritor” (BACHELARD, 1988, p. 10), tal concepção de partilhar um mesmo espírito que anseia por conhecimento movimenta ambos a encontrar suas respostas na observação. Nesse sentido o leitor recebe o benefício de compreender o fato ou o espaço sem compartilhar dos mesmos sofrimentos do escritor, sendo reconfortado pela palavra ao passo que compreende todos seus dramas (1988, p.14).

É exatamente essa conexão de almas que possibilita a fundamentação do fluxo de narrativas que formam a observação de qualquer mundo histórico, uma teia de experiências que aos poucos dá vida e relevância a algo fantástico. Uma encruzilhada de momentos passados, presentes e futuros que inegavelmente elucidam a verdadeira maravilha que é compreender o Araguaia em todo seu esplendor, a sentir o privilégio de sua presença na realidade do Cerrado brasileiro.

Certo concluir que, os trabalhos imagéticos construídos a partir da imensidão do rio brasileiro possibilitam a criação de um pensamento teórico capaz de traduzir os caminhos de cada indivíduo, de sentir suas angústias e principalmente compartilhar do mesmo afeto para com o Araguaia. Tornando o leitor figura de excelência para a concepção do relato.


REFERÊNCIAS


BACHELARD. Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes 1998.

BORGES, Durval Rosa. Rio Araguaia corpo e alma. São Paulo: Ibrasa,

1987.

MAGALHÃES, Couto de. Viagem ao Araguaia. Brasília: Brasiliana, 1975.

OLIVEIRA, Maria de Fátima. OLIVEIRA, Eliézer. Manoel Buarque:

Tocantins e Araguaya. Curitiba: CRV, 2022.




Wisley Micael é graduado em história pela Universidade Estadual de Goiás e mestrando em Ciências Sociais e Humanidades pelo Programa de Pós-Graduação em Territórios e Expressões Culturais do Cerrado (TECCER). Suas pesquisas se desdobram em duas vertentes, estudos acerca da história e da relevância do rio Araguaia para o desenvolvimento do cerrado e, questões geopolíticas na América Latina do século XX.

 
 
 

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