MÚSICA AGRO RESISTE À MORTE DO SERTÃO
- teccernusacer
- 9 de out. de 2024
- 8 min de leitura
“Estamos condenados à civilização”
Euclides da Cunha

“O sertanejo é acima de tudo um forte”, escreveu celebremente Euclides da
Cunha (1966). Intelectual atento, o pré-modernista antevia, na aurora da república, a
experiência historicamente marginalizada num Brasil tanto indescoberto
imageticamente. Aquela que longe da crônica oficial da república feita por doutores, via
um todo muito maior e interiorizado.
Nesse sentido e por outras formas, Machado de Assis também pressentia o
mesmo. Em sua opinião existiam dois Brasis: o país oficial, caricato e burlesco; e o país
real, que era bom e virtuoso (ASSIS, 1938). Assis não pensava necessariamente no
sertanejo, mas já entendia que a importação de modos da dita “civilização” era uma
caricatura mal feita.
Assim, a literatura brasileira na virada do século XIX para o XX já percebia
o que só em Vargas seria instrumentada em política de estado: o “Brasil” se estendia
para muito além do litoral.
Oficialmente, dentro da generalização das escolas literárias, o regionalismo
só surgia 30 anos depois. Em 1926, Gilberto Freyre se inspirando e ao mesmo tempo
respondendo o modernismo da Geração de 22, escreve o Manifesto Regionalista. O
Manifesto em si é cheio de contradições, como todo o modernismo à época. Mesmo
assim é um ato representativo. Autores como José Lins do Rego, Jorge Amado,
Bernardo Éllis, Graciliano Ramos, entre outros, ganham, na esteira dessas
movimentações, proporção. O tema “regional” ganha aclamação nacional. Nesse
momento, essencialmente, não se trata somente do sertanejo ou regional, que é apenas
uma subsecção importante; mas o Brasil como um outro, para muito além de suas
fronteiras litorais, ou mais especificamente, de sua imagem sul-sudeste.1
A descoberta do sertão e do sertanejo é um advento que acompanha as
tensões políticas na primeira metade do século. Vargas ruma com sua Marcha para o
Oeste, adentrando o Centro-Oeste e o Norte. Na década de 50, JK traz um plano
audacioso que cuja explicação há muito das tensões relativas à política de integração
nacional. Brasília, nesse sentido, representa sobretudo a consolidação do processo de
territorialização. O discurso entretanto é viciado: enquanto atividade política, a
territorialização do interior do país se assenta na perspectiva da modernização; de trazer,
entre muitas aspas, o que seria a civilização.
Existe certo descompasso no que tange a arte e a política nesses recortes
supracitados. Na música, paralelamente às políticas de territorialização e integração, por
exemplo, a nascitura música caipira se constitui como um gênero de aspirações
tradicionalistas entre as décadas de 30 a 60.
Mais à frente, já sertanejo, até mesmo em sua ascensão comercial com os
temas românticos na década de 80, mantém traços característicos que a ligam ao mundo
tradicionalmente recortado como do “sertão”. Ou seja, na beira final do século XX, em
que se firmou a globalização e o discurso da modernidade no Brasil, o tema interiorano,
naturalmente readaptado ao novo mundo que se entrevia, ainda atrai interesse. Não mais
se canta o homem à beira do quintal falando das plantas e animais que vê; mas ainda
sim usa chapéu, bota, tem sotaque, e, mesmo que esteja sofrendo numa boate da cidade,
ainda sente saudade de sua velha roça. 2
1 O regionalismo sulista constitui caso à parte ao recorte aqui buscado. De fato, há também uma
redescoberta imagética nas décadas aqui trabalhadas. Mas a construção de uma ideia de “sertão” se
aplica em especial ao centro-norte brasileiro. Isto é, principalmente a região histórica da Paulistânia e o
agreste nordestino, cujo discurso no processo histórico representava-as praticamente como regiões
bárbaras. Não são representações apenas redescobertas ou continuadas, mas praticamente inéditas no
cânone da literatura, cujo esforço de superação de preconceitos transforma até mesmo o tom pejorativo
do “sertão”.
2 Paralelamente poderia se usar de exemplo o desenvolvimento do forró e gêneros primos. A escolha
pelo Sertanejo se dá em especial pela sua notável projeção comercial.
Já estamos na década de 80-90. O Estado do Brasil, entre golpes, já se vê
mais amadurecido, inaugurando uma Nova República baseada na constituição mais
democrática de até então (1988).
Na arte, a ascensão do tema sertanejo já aconteceu. No início do século XX
o modernismo trouxe um exercício de auto redescoberta brasileira. Inevitavelmente,
grande parte dessa redescoberta teria que surgir de sua zona profunda, escamoteada ao
longo do processo histórico. Mas agora, após anos de tentativas de integração, o que
garantiria sua manutenção como temática ou pelo menos estereótipo artístico? Afinal, o
sertão, o interior, já não tinham tido sua vez na história? Adentrando essa possibilidade,
o caso do sertanejo romântico é exemplar, mas nem todos movimentos que buscaram
sua essência numa identidade particular obtiveram o mesmo sucesso. Como foi o
ocorrido na sétima arte com a experiência do Cinema Novo.
Primeiramente, vale lembrar que o cinema brasileiro teve trajeto semelhante
ao desenvolvimento da literatura. Na década de 40-50 tinha base na “chanchada”, tipo
de filme que emulava, de forma enfadonha, as grandes produções estadunidenses. Uma
estética importada, algo parecido com o que ocorreu sobretudo na literatura comercial
do século XIX.
A reação começou a se desenhar já na década de 50, com seu auge nos anos
60, qual um dos marcos práticos podemos citar o Manifesto de Glauber Rocha em prol
da Estética da Fome, em 1965. Inaugurava-se o Cinema Novo, movimento que buscava
um cinema reconhecidamente nacional, e que também, dentro de uma perspectiva
revolucionária marxista, pretendia escancarar as desigualdades sociais do país. Seus
principais ambientes temáticos eram as favelas, e, novamente, o sertão.
Glauber Rocha, baiano de origem e reconhecidamente o maior nome do
movimento, trabalhou na reconstrução estética de um sertão não mais inédito, mas que
mesmo diante às pretensões políticas históricas de “integração”, ainda se via
marginalizado e desigual - como trata principalmente em Terra e Transe (1967). Uma
postura crítica promissora que foi amplamente adotada, premiada e até hoje exaltada
sobretudo por grupos marxistas, mas que, entretanto, não perdurou.
Ressalvada as próprias contradições e cisões internas do movimento, que
inclusive alimentou relações estranhas para com a Ditadura e mercado, o fim em termos práticos já se aparente no final de 70. Claro que se deu de forma difusa tal “morte”,
como também a continuação via legado e influência é outro fator a considerar. Mesmo
assim, é um fim relativamente rápido, ainda posto a periodicidade de escolas artísticas.
Principalmente se analisar que no cinema, como na música, devido a alta comercial, as
tendências tendem a se homogeneizar. De modo que essa curta passagem se explica
sobretudo pela opção, ou melhor dizendo, pela não possibilidade de adaptação e
homogeneização devido a seu caráter político-ideológico. O sertão do Cinema Novo é
um sertão revolucionário, que se mostra, dá sua voz, mas não aceita a “civilização”. E
essa opção de valores explicita a aceleração de seu fim. O que não aconteceu, por outro
lado, com a Música Sertaneja.
No Sertanejo, após a tendência romântica, que teve seu auge nas décadas de
80 e 90, e ainda mais modestamente se preservou na virada do século em diante, o
gênero seguiu o caminho consagrado como “universitário”. Os temas das canções, a
princípio, não se alteraram muito - amor, traição, brigas - mas o ambiente era
notadamente novo. O cabaré deu lugar ao barzinho; o choro sofrido de um amor de
meia idade, do fim de um casamento, deu lugar a um amor juvenil e escaramuças de
ficantes; a pinga lugar a vodca entre outras bebidas importadas; o telefonema à
mensagem virtual; e, principalmente, como um todo, a estética de saudade do interior
dos cancioneiros românticos cedeu espaço a um mundo até mesmo de ostentação - a
Fiorino foi substituída pela Land Rover3.
É uma adaptação de não muita difícil explicação. Não se pretende
aprofundar aqui esses entrelaçamentos especificamente. Mas trata-se a princípio da
mercantilização da cultura, no sentido mesmo de cultura de massa (ADORNO E
HORKHEIMER, 2002) . Ou seja, se por um lado o Cinema Novo foi incapaz de
perpetuar-se devido sua carga ideológica, tal não aconteceu com o Sertanejo que soube
se perpetuar no mercado fugindo de anacronismos e polêmicas com o status quo..
O interessante desta manobra, entretanto, reside na figura histórica do
sertanejo, que seria, a priori, adversa a adaptação comercial. Sua percepção na
literatura, por exemplo, se dá dentro de um movimento de vanguarda - inovador e assim tanto oposto a uma ideia de homogeneização comercial -, e que se por acaso retumbou
sucesso, muito se deve aos critérios particulares do campo literário. Mas então, afinal,
que seria esse ator sertanejo que fora capaz de resistir a quase um século de vida?
3 Referência ao hit de Gabriel Gava, lançado na década de 2010: “De Land Rover é fácil/ é mole/é lindo/ Quero ver botar a gata no fundo da Fiorino”.
Um caso interessante que ilustra a particularidade dessa adaptação é o da
cantora Ana Castela. Aclamada desde 2021 como um dos grandes prodígios da música
sertaneja atual, o agronejo, foi apelidada de “a boiadeira”. Seu estilo é tipicamente
universitário, mas contém movimentos de inovação recentes: a mescla e feat’s com
outros estilos; algumas incorporações rítmicas do funk; letras com refrões repetitivos e
sonoros. E, para além da musicalidade, uma venda de identidade impecável: chapéu,
bota, colete, cinto, berrante.
Em questão de imagem, Ana Castela parece continuísta. O próprio epíteto
de a boiadeira faz lembrar clássicos da literatura goiana, como Tropas e Boiadas
(1917). Mas ao partir para o conteúdo que transmite, como canta uma história de uma
patricinha que aprendeu a andar de cavalo (“Boiadeira”,2021), percebe-se: se boi, é da
pecuária moderna, não o de tropas oitocentistas.
O boiadeiro do século XXI é cosmopolita: não só como vende sua imagem,
mas também em sua origem. Diferentemente de cantores de outra geração que
amalgamaram sua carreira e biografia pessoal através do mundo rural (como
notavelmente fez a dupla Zezé di Camargo & Luciano que cuja história pessoal rendeu
o longa Dois filhos de Francisco), os da nova, como Ana Castela, amalgamam suas
biografias através da contemporaneidade: a boiadeira foi descoberta através de covers
na internet, é oriunda de uma família bem condicionada, e diferente do trajeto comum
dos pregressos ícones do sertanejo, desde o princípio contou com uma infra-estrutura
gigantesca (CASTELA, 2021). Ela mesmo compreende, ainda que de forma difusa,
participar de um novo momento histórico da música “caipira”: aquilo que se chama de
agronejo - o fim do sertão, em termos etimológicos, para a música.
No auge do sertanejo universitário já se questionava na mídia e na crítica a
que fim levaria a comercialização do gênero. Música de sertão, esse sertanejo já se
rompia da estereotipagem tradicional. A solução original nos últimos anos foi perceber:
na verdade o que está em voga não são mais os sertões antiquados, sim o agro, no
sentido mesmo que remete mais ao agronegócio e agropecuária, essas sim verdadeiras
formas representantes do interior brasileiro contemporâneo. A sociedade mudou, os
antigos caipiras foram para as cidades e incorporaram elementos, habitus, novos: se
modernizaram, mesclaram as raízes ao ar da novidade. E enfim, pode-se dizer, pelo
menos na música: “o sertão morreu, aqui se tem algo novo”.
Assim, o sertanejo resistiu à própria “morte” do sertão. Se tornou um
instrumento de cultura de massa, comercializável, e sobretudo atualizado com as
tendências culturais pós-modernas. Essa é sua história, tal como a do homem
“regional”, que, do início do século XX até a atualidade, não é mais o mesmo. Se por
acaso perdeu, nesse sinuoso caminho, valores bons e desejáveis, e por outro lado, se
tornou parte de um jogo viciado e artisticamente estéreo, se trata de outro debate. Aqui
pretende-se apenas evidenciar que os caminhos que mudaram a música sertaneja não
foram ocasionais.
REFERÊNCIAS
ASSIS, Machado de. “Comentários da semana”. Publicado originalmente em ‘Diário
do Rio de Janeiro’, Rio de Janeiro, 29 de dezembro de 1861. In: ASSIS, Machado de.
Obra Completa. Rio de Janeiro: Edições W. M. Jackson,1938.
CASTELA, Ana. “Ana Castela”. Entrevista para o The Noite em 2 de novembro de
2022. Disponível em:<https://youtu.be/iQEFFc7Cu-Q?si=ZXpbMr4HkfMYzpy8> Data
de acesso: 25 de maio de 2024.
CUNHA, Euclides da. Os sertões. IN. Obras completas (Volume II). Rio de Janeiro:
Aguilar Editora, 1966.
FREYRE, Gilberto. Manifesto regionalista. 7.ed. Recife: FUNDAJ, Ed. Massangana,
1996. p.47-75.
HORKHEIMER, Max & ADORNO, Theodor. A indústria cultural: o iluminismo
como mistificação de massas. Pp. 169 a 214. In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da cultura
de massa. São Paulo: Paz e Terra, 2002. 364p.
ROCHA, Glauber. Manifesto Estética da Fome. In: ROCHA, Glauber. Revolução do
Cinema Novo, CosacNaify, 2004: 63-67.

Marcos Alonso é graduando em História (licenciatura) pela Universidade Estadual de
Goiás, com previsão de conclusão em 2025. Seus estudos de iniciação científica e
objeto de pesquisa são voltados para História Cultural, Memória e Historiografia de
Goiás.
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