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SAÚDE INDÍGENA NO CERRADO: CAMINHOS DE RESISTÊNCIA, SABERES E CUIDADO

Vitória Maria de Oliveira

 

“Nossa medicina é a floresta. É com ela que nós vivemos e curamos.”– Ailton Krenak



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A saúde indígena no Brasil é um campo que transcende os limites da medicina ocidental e nos convida a escutar, respeitar e compreender outras formas de existir, cuidar e resistir. No coração do Cerrado, onde vivem diversos povos originários como os Iny Karajá, os Krahô, os Xerente, os Xavante, entre outros, o cuidado com a saúde é indissociável do território, da espiritualidade, da coletividade e da memória ancestral [7]. Esses povos habitam o Cerrado há milênios. São guardiões de uma sabedoria que integra o corpo ao espírito, a cura ao ambiente, o indivíduo à comunidade. Falar sobre saúde indígena não é apenas discutir políticas públicas ou indicadores epidemiológicos. É também falar de luta por território, por reconhecimento, por dignidade e por respeito aos modos de vida originários [1].

Para os povos indígenas, a saúde não é compreendida apenas como a ausência de doenças, mas como um estado de equilíbrio entre o corpo, o espírito, a coletividade e a natureza [5]. Nas aldeias do Cerrado, é comum que os processos de cura envolvam rituais coletivos, cantos sagrados, uso de plantas medicinais e práticas conduzidas por lideranças espirituais como pajés, rezadores ou curadores. Esses saberes não são fragmentados ou compartimentalizados como na medicina ocidental. A cura é vista como uma travessia que envolve o corpo físico, mas também o espírito, as emoções, as relações familiares e o contato com os encantados.

O adoecimento, por sua vez, pode ser entendido como o rompimento dessa harmonia [6] . Apesar dos avanços legais, como a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI), instituída em 2002, e a criação dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs), o acesso à saúde de qualidade ainda é um desafio concreto para muitas comunidades [3]. Faltam profissionais capacitados para atuar com respeito às especificidades culturais, há carência de estrutura nos polos base, dificuldade de acesso às aldeias, demora nos atendimentos e, muitas vezes, desconsideração dos saberes tradicionais [4]. Além disso, há uma rotatividade elevada nas Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena, o que dificulta a criação de vínculos e o conhecimento profundo das realidades locais. Muitos profissionais chegam sem formação intercultural, sem domínio da língua e sem sensibilidade para os modos indígenas de compreender o cuidado [9]. Essa lacuna no preparo técnico e ético gera tensões e, em alguns casos, o afastamento das comunidades do sistema oficial de saúde. O modelo biomédico, centrado em evidências e protocolos, muitas vezes ignora os saberes indígenas como legítimos. A ausência de diálogo entre os dois sistemas reforça desigualdades e impede que a atenção à saúde seja realmente integral, intercultural e resolutiva [1]. A saúde indígena também é profundamente impactada pelas ameaças ao território. Para os povos originários, a terra é mais do que espaço físico: é fonte de vida, espiritualidade, medicina, alimentação e identidade [8]. A destruição do Cerrado um dos biomas mais ameaçados do mundo compromete diretamente a saúde física, emocional e espiritual das comunidades indígenas. A contaminação das águas, o desaparecimento de plantas medicinais, a escassez de caça e pesca e a degradação dos solos afetam a segurança alimentar e as práticas tradicionais de cuidado [10]. Além disso, os conflitos fundiários e a violência têm gerado sofrimento coletivo e impactos psíquicos graves, especialmente entre os jovens. O avanço do agronegócio e da mineração ameaça não apenas os corpos indígenas, mas também seus modos de vida. A violação dos territórios sagrados rompe vínculos simbólicos e espirituais fundamentais para a saúde das comunidades [2]. Apesar das adversidades, as comunidades indígenas seguem mobilizando seus próprios meios de resistência e cuidado. Pajés, parteiras, rezadeiras, anciãos e anciãs continuam exercendo papéis fundamentais na preservação dos saberes e no fortalecimento dos laços comunitários [6]. Em muitos territórios, essas lideranças atuam de forma complementar às equipes de saúde. Há experiências positivas que envolvem o diálogo entre os sistemas, como a valorização de práticas tradicionais, uso de plantas medicinais e o acolhimento das espiritualidades indígenas no contexto do cuidado [5]. Essas práticas mostram que é possível construir pontes entre os saberes, desde que haja escuta mútua e reconhecimento da legitimidade dos conhecimentos indígenas. A juventude também tem ocupado novos espaços, como universidades e cursos de formação em saúde, retornando às aldeias como protagonistas de um cuidado mais sensível e enraizado na cultura local [9]. É urgente que a sociedade como um todo reconheça o valor dos modos indígenas de cuidado. Isso exige a desconstrução de preconceitos e o rompimento com visões coloniais que reduzem os saberes tradicionais a crenças ou folclore [4]. A escuta atenta e respeitosa é o primeiro passo para a construção de uma saúde intercultural e justa. Valorizar a saúde indígena é também reconhecer as violências históricas: a invasão dos territórios, a tentativa de apagamento cultural, o silenciamento das línguas. É admitir que o sofrimento vivido por essas populações tem raízes estruturais e que a reparação passa pelo fortalecimento da autonomia e dos saberes tradicionais [8]. A saúde indígena no Cerrado é expressão de um saber que resiste e floresce mesmo diante das ameaças. Cada ritual de cura, cada criança nascida com a ajuda de parteiras tradicionais, cada jovem indígena que escolhe a saúde como caminho, representa a continuidade de um legado ancestral. Defender a saúde indígena é defender o Cerrado, é defender os territórios de vida. É escutar com humildade, respeitar com profundidade e caminhar com compromisso ao lado dos povos que há séculos cuidam da terra e nos ensinam o que significa, de fato, viver em saúde.



REFERÊNCIAS


[1] ATHIAS, R.; MACHADO, M. Saúde indígena: uma introdução ao campo e seus paradigmas. Cad. Saúde Pública, v. 17, p. 425-431, 2001.


[2] BRAND, A.; SILVA, L. A terra, o corpo e a saúde: desafios da atenção diferenciada em contexto indígena. Revista de Antropologia da UFSCar, v. 10, n. 2, p. 147-166, 2018.


[3] BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. Brasília: Ministério da Saúde, 2002.


[4] CARNEIRO DA CUNHA, M. Cultura com aspas. São Paulo: Cosac Naify, 2009.


[5] COIMBRA JR., C. E. A.; SANTOS, R. V.; ESCÓSSIA, L. Desigualdades sociais e saúde dos povos indígenas. In: BRASIL. Ministério da Saúde. Saúde Brasil 2015/2016. Brasília: Ministério da Saúde, 2015. p. 103–120.


[6] LANGDON, E. J. M. Medicina Tradicional e atenção diferenciada à saúde: desafios e perspectivas. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 19, n. 55, p. 43-59, 2004.


[7] LANGDON, E. J. M.; WIKEE, L. S. Antropologia da saúde: traçando identidade e diferença no campo da saúde indígena. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 25, n. 74, p. 5-20, 2010.


[8] LITTLE, P. E. Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil: por uma antropologia da territorialidade. Série Antropologia, Brasília: UnB, 2006.


[9] PEREIRA, A. M. C.; NUNES, E. D. Saúde indígena e formação profissional: o desafio da interculturalidade. Ciência & Saúde Coletiva, v. 25, n. 9, p. 3507–3514, 2020.


[10] RIBEIRO, D.; LIMA, A. Cerrado em chamas: impactos do desmatamento e do agronegócio sobre os povos indígenas. Instituto Socioambiental, 2021.




Vitória Maria de Oliveira
Vitória Maria de Oliveira

Vitória Maria de Oliveira, mestranda em Ciências Sociais e Humanidades pelo Programa de Pós-Graduação em Territórios e Expressões Culturais do Cerrado, da Universidade Estadual de Goiás e Pós - Graduanda em Farmácia Clínica e hospitalar pelo Centro Universitário Internacional Uninter, inglês intermédiario ll em andamento pela escola de idiomas Speaking Lab, Bacharel em Farmácia pela Universidade Estadual de Goiás

 
 
 

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