SERTÃO SERTANEJO: história, música e cultura
- teccernusacer
- 10 de out. de 2023
- 7 min de leitura
Atualizado: 29 de nov. de 2023
por Deborah Bastos Maia
“A música expressa o que não pode ser dito em palavras, mas não pode permanecer em silêncio.”
Victor Hugo

Imaginemos o sertão e todas as suas características, lugar de mescla entre o urbano e o rural, com culturas específicas e diversificadas, literatura, música, culinária, diferente da imagem concebida pelos primeiros viajantes de um sertão seco, com poucos recursos de sobrevivência, pouco habitado, onde seus moradores sofrem com a fome e a seca, ideia esta que por muito foi sustentada pelas riquezas encontradas em umas regiões e em outras não, permeadas por uma desigualdade histórica e social, traços que possibilitaram a cultura sertaneja, que descreviam o modelo de vida no sertão, e estão presentes nas crenças, nos objetos, nas músicas, na literatura de cordel, e podem ser de cunho individual e coletivo.
O sertão é permeado por esse imaginário, no princípio estava diretamente ligado às regiões nordestinas, nas figuras de Lampião e Maria Bonita, nas figuras caipira-sertaneja de Jararaca e Ratinho, sujeitos importantes no cangaço e na música popular, entretanto Almeida (1998) pontua que “o sertão não está apenas na caatinga, mas em Minas Gerais, no Cerrado, na Amazônia, e até na vida cabocla dos homens e mulheres do sudeste e sul brasileiro”. Vicentini (2016), pontua que “o sertão constitui-se em territórios distantes das capitais dos estados litorâneos”, região cobiçada e bastante explorada, Souza (1997) destaca que “o sertão foi, antes de mais nada, imagem fabricada, invenção dos homens cultos que, das varandas costeiras, olhavam para o interior”, essas visões que se constituíram reforçavam a ideia de atraso no sertão.
A geografia do sertão é extensa, engloba várias regiões, Ceará, Bahia, Pernambuco, Minas Gerais, Goiás, dentre outras, e ao contrário do que o imaginário nos mostra é uma região rica em sua fauna e flora, apresenta uma biodiversidade incrível, paisagens extraordinárias, e cultura que se transforma e se modela de região em região, essa mescla cultural que se torna tão intensa e bonita, música, literatura, culinária, a junção de humor e criatividade que distingue os povos sertanejos. Goiás apresenta esses traços específicos do sertão, abrigando uma diversidade e mesclando hábitos rurais e urbanos, fator que enriquece a vivência humana e a cultura no estado, por apresentar diferentes tempos históricos e diferentes paisagens sertanejas.
Permeando esse caminho, imaginemos um mundo sem música, literatura cantada entoada pelo povo, música essa que faz parte da cultura local, que se espalha e remete a identidade. Sabemos que a cultura significa identidade, nessa perspectiva podemos dizer que a mesma está carregada de saberes, expressões e sentimentos, a cultura popular se refere às diferentes formas de expressar a arte, seja ela individual ou coletiva, no intuito de construir vivências importantes para o desenvolvimento humano, “ a música, a dança, a literatura, o artesanato, a culinária, o costume e as crenças são transmitidas de forma oral, visual e gestual” (Rodrigues e Bicalho, 2017), nesse sentido percebe-se que a cultura popular é símbolo de resistência e foi passada de geração em geração no intuito de manter viva as histórias locais.
Muitas das expressões da cultura que, no passado eram praticadas com fins religiosos, atualmente aderem a outros requisitos. As festividades se tornaram mais populares e a comunidade local se apropria de práticas com intenção de promover e valorizar o bem patrimonial. (Rodrigues e Bicalho, 2017).
O estilo sertanejo usa essas histórias de vida, e através da história oral reproduz o conhecimento, narra a vida no campo, a criação de gado, o plantio e a colheita, usa símbolos, descreve sentimentos pessoais e coletivos, é uma cultura popular que ganhou força e se desenvolveu no intuito de se manter viva, entoando as vivências do “ômi e da muié” do sertão, que embora “sem instrução”, como comumente dizem eram pessoas boas, humildes e “trabaiadoras”, que buscavam através do trabalho uma sobrevivência digna, traços que fazem parte da cultura sertaneja, uma vez que, o respeito, o trabalho e a dignidade são características fundamentais para manter o costume, as lendas e a tradição.
Portanto, é importante ressaltar que a música nesse sentido “constitui-se em um código cultural que promove a integração social e cultural de forma expressiva, permitindo dessa maneira, que sua identidade cultural seja reconhecida e fundada” (Sues e Almeida, 2015). Santos (2012), destaca que a música é uma excelente condutora de significados, ela propaga a cultura, ela une grupos sociais, culturais, e expressam aquilo que precisa ser dito, angústia, prazer, medo, alegria, amor, o cotidiano, é uma “forma de comunicação do indivíduo e do grupo com o universo, é uma herança, mas também um reaprendizado das relações profundas entre o homem e seu meio”, Sues e Almeida (2015), concluem esse pensamento dizendo que “não há cultura sem homem nem homem sem cultura”, deste modo compreende-se que a música carrega a identidade cultural, que se formou ao longo dos anos, fruto de experiências sociais, coletivas e pessoais.
A cultura goiana é baseada nessas relações que se formaram ao longo dos anos, existe uma arte que se propaga de diferentes formas, na culinária específica do Cerrado, nas batucadas de congos. Essas características culturais transformam Goiás em um lugar único, embora a música sertaneja tenha se tornado fonte de desenvolvimento econômico ela fomenta o turismo, Sues e Almeida (2015) destacam que a música sertaneja em Goiás, conferem a população um certo orgulho, isso acontece por que “as músicas são feitas por cidadãos comuns, não possuem vínculos com o governo, estados e empresas”, compreende-se que os artistas são autênticos e verdadeiros, demonstram amor e carinho pelo que fazem e pelo público que cativam.
A música Sertaneja é a música do sertão, é um estilo que se desenvolveu no interior do Brasil, e sofreu modificações no decorrer dos anos, se tornou parte de uma cultura em massa, e fabricado para ser vendido. Ulhôa (1999), afirma que o sertanejo se caracterizou ao longo dos anos, se internacionalizou, através da “incorporação de ritmos e roupagens, da moda de viola à balada, da sonoridade caipira ao som orquestral”, todos esses fatores atribuem ao sertanejo uma massificação da música, que antes eram produzidas no campo atendendo o setor primário local, e hoje são produzidas no meio urbano prontas para serem comercializadas em grande escala.
Ainda com Ulhôa (1999), o estilo passou por diversas modificações, a autora divide a história do sertanejo em três fases, a caipira raiz de 1929 até 1944, a fase de transição em 1950 até 1960, e a terceira fase Sertanejo Romântico de 1970 até os anos 2000, dentro dessas categorias é importante destacar o que pode ser chamado de a quarta era do sertanejo o sertanejo universitário. Bastos (2009) ressalta que o sertanejo universitário é feito por artistas “pop”, embora haja acadêmicos que não concordam com esse pensamento afirmando que a música caipira é diferente da sertaneja, ou seja, enquanto uma é feita pelo homem do campo a outra é feita pelo homem urbano.
Dualidades que são visíveis, quem nunca escutou “música não dá dinheiro”? Nessa nova fase o estilo sertanejo veio e mostrou que “é um mercado bastante lucrativo”, a nova roupagem arrasta multidões e arrecada milhões, o mercado econômico de forma direta e indireta se beneficiou do estilo musical em ascensão.

Nessa perspectiva, analisemos a música “Boiadeiro errante”, composta por Teddy Vieira de Azevedo (1959) e popularizada na voz do sertanejo Sergio Reis embora tenha sido interpretada por Inezita Barroso e Almir Sater. A canção fala sobre a vida de um de um boiadeiro que viaja entre dois estados brasileiros, Minas Gerais e Goiás, tocando boiada, a música representa o sentimento do boiadeiro e as adversidades que ele encontra em seu caminho.
Eu venho vindo de uma querência distante/sou um boiadeiro errante, que nasceu naquela serra/O meu cavalo corre mais que pensamento, ele vem no passo lento porque ninguém me espera/ Tocando a boiada, auê-uê-uê-ê boi eu vou cortando estrada, uê boi/ Toque o berrante com capricho, Zé Vicente/ Mostre para essa gente o clarim das alterosas/ Pegue no laço, não se entregue companheiro, chame o cachorro campeiro que essa rês é perigosa/ Olhe na janela, auê-uê-uê-ê boi, que linda donzela, uê boi/ Sou boiadeiro, minha gente o que é que há?/ Deixe o meu gado passar, vou cumprir com a minha sina/ Lá na baixada quero ouvir a siriema, prá lembrar de uma pequena que eu deixei lá em minhas/ Ela é culpada, auê-uê-uê-ê boi, de eu viver nas estradas,uê boi/ O rio tá calmo e a boiada vai nadando/ Olhe aquele boi berrando, Chico Bento corre lá!/ Lace o mestiço, salve ele das piranhas, tire o gado da campanha para a viagem continuar!/ Com destino a Goiás auê-uê-uê-ê boi deixei Minas Gerais uê boi.
Percebemos que a música está carregada de sentimentos e descreve os ambientes e as adversidades que estão sendo vivenciadas pelos boiadeiros bem como os prazeres da profissão, entoa os sentimentos da vida profissional e pessoal do personagem que faz parte da cultura no sertão, nesse sentido levam através da música sua cultura para várias regiões do país, Sues e Almeida (2015),destaca que o sertanejo se projetou para o “cenário da música brasileira”, nesse sentido o estilo soube aproveitar as peculiaridades do cotidiano usando em suas composições características que podem ser encontradas na cultura local, na construção do espaço explorando de diferentes formas e sentidos, entoando seu amor pelo trabalho no campo, por sua pátria, por suas vivencias, agregando experiência a composição.
REFERÊNCIAS
BASTOS, G. M. Jovem música sertaneja: a construção da marca dos artistas sertanejos contemporâneos. 2009. 58 f. Monografia (Bacharel em Publicidade e Propaganda), Universidade de Brasília, Brasília 2009.
CHAUL, N.F. A identidade cultural do goiano. Ciência e Cultura, São Paulo, v. 3, n. 3, p. 42, jul.2011.
CORRÊA, R.L. Geografia, Literatura e Música popular. Espaço e Cultura, n.6, jul/dez. 1998.
COUTO. B. G. A economia simbólica da cultura popular sertanejo- nordestina, Revista Sociedade e estado - Volume 27 número 2 - maio/agosto 2012.
SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo. Razão e Emoção. São Paulo: Edusp, 2012.
SUESS, R.C.; ALMEIDA, S.A. O lugar de Goiás nas letras de músicas sertanejas: uma abordagem geográfica. Revista Online - caminhos de geografia, disponível em < http://www.seer.ufu.br/index.php/caminhosdegeografia/> ISSN 1678-6343 Uberlândia v.16, n. 54, jun/2015. Acesso em 09/10/2023.
RODRIGUES, D.P.S.; BICALHO, P.S.S. Um olhar para as expressões culturais de Goiás-Brasil: relato de uma exposição em recorte. Biblionline, João Pessoa, V.13, n. 4, p.110-120, 2017.
ULHÔA, M. T. Música sertaneja e globalização. in: TORRES, R. Música popular em América Latina. Santiago, Chile: Fondart. Rama Latino-americana IASPM, 1999.
SOUZA, Candice Vidal e. 1997. A pátria geográfica. Sertão e litoral no pensamento social brasileiro. Goiânia: editora UFG. 171 pp. Disponível em < https://doi.org/10.1590/S0104-93131999000100014 >. Acesso em 09/10/2023.

Deborah S B Maia possui graduação em História pela Universidade Estadual de Goiás (2019). Tem experiência na área de História, Mestranda em Ciências Sociais e Humanidades pelo programa de Pós-Graduação em Territórios e Expressões Culturais do Cerrado, da Universidade Estadual de Goiás e integrante do Núcleo de Pesquisa dos Saberes Tradicionais e Ambientais do Cerrado, NuSACER (TECCER-UEG), as pesquisas se debruçam sobre a história da música sertaneja em Goiás, História Cultural, Cultura Popular e Cultura de massa, em especial a vida e obra da cantora e compositora goiana Marília Dias Mendonça e a representatividade da mulher na música sertaneja.
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3689413733722989
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