SAGRADO E PROFANO ENTRELAÇADOS: A ROMARIA DODIVINO PAI ETERNO EM TRINDADE, GOIÁS.
- teccernusacer
- 4 de set. de 2024
- 5 min de leitura

A Romaria do Divino Pai Eterno realizada em Trindade de Goiás é um dos principais
eventos religiosos do Brasil. “No ano de 2023, a romaria atingiu um recorde ao reunir 3,6
milhões de pessoas nos 10 dias de festividade” (G1, 2023), marcando o festejo religioso como um dos mais numerosos do mundo.
A história da devoção ao Divino Pai Eterno em Goiás se entrelaça com a fé e a vida
do povo goiano. Para explicar o começo dessa manifestação religiosa há algumas versões.
Segundo Carvalho (2007), a versão que mais se condiz com os relatos é a que se remonta no século XIX em 1840, quando o casal de agricultores, Constantino Xavier Maria e Ana Rosa de Oliveira, encontram um medalhão em sua propriedade, no qual continha uma imagem daSantíssima Trindade coroando a virgem Maria. Segundo relatos, o medalhão foi encontrado por Constantino enquanto trabalhava na terra. Complementando, Oliveira (1999), em sua obra “Conhecendo o Santuário do Divino Pai Eterno”, diz:
Quem entra pela porta principal, necessariamente, passa sobre o maior de
todos os vitrais. Nele vemos a representação do encontro ou do achado do
medalhão, pelo casal Constantino Xavier e Ana Rosa. Isto deu-se por volta
de 1840. Este vitral é interessantíssimo, pois, conforme a visão da Igreja,
mostra como Deus se serve de pequenos sinais para fazer grandes prodígios.
Vemos ali uma pequena choupana, habitação simples, de gente pobre e uma
pequena lavoura sendo cuidada por Constantino e Ana Rosa. Em dado
momento Constantino bate a enxada em uma pedra ou coisa parecida,
abaixa-se para remover o obstáculo e se embaraça: não é uma simples pedra,
é uma medalha de barro. Ana vem apressada para ver do que se trata. Limpa
a medalha em suas vestes a medalha suja de terra, e observa bem e quanto
mais observa como a vida fica: é uma representação divina, explica ela ao
marido. É o pai do céu no seu trono de Glória, com Jesus e o Divino Espírito
Santo coroando Nossa Senhora. Que achado fantástico! (OLIVEIRA apud
CARVALHO OLIVEIRA, 2007, p.20)
A partir desse momento, o casal, tomado por profunda devoção à imagem sagrada,
iniciou orações e reuniões em sua casa, atraindo cada vez mais fiéis. A notícia se espalhou
rapidamente, e logo o local se tornou um ponto de peregrinação para pessoas em busca de
cura. De acordo com Martins (2001, p. 122) “Conta-se, também, que em 1843 a medalha
passou do recinto residencial e teve lugar próprio, a casa de oração coberta de folhas de
buriti”. Com o passar dos anos uma capela foi erguida para abrigar o medalhão e atender à
crescente demanda de devotos, que mais tarde ao seu redor teria iniciado o arraial do Barro
Preto, atual Trindade de Goiás.
Segundo Carvalho (2007, p. 20) “No início, a Romaria era caracterizada como
religiosidade popular, mas, com o tempo, a Igreja Católica foi incumbida de institucionalizar
e cristianizar essa fé, mediante o processo de romanização”. Ou seja, as romarias, antes da
intervenção da Igreja, eram manifestações espontâneas da fé, muitas vezes ligadas a devoções locais.
Inicialmente, a prática da devoção ao Divino Pai Eterno era realizada através da
piedade popular, na qual se predominava manifestações espontâneas de fé, com práticas que de certo modo distanciavam da doutrina oficial da igreja católica. Com o passar do tempo, a Igreja católica institucionalizou a fé popular, através de um processo de romanização.
No que diz respeito a romanização, João Otávio Martins (2001) em sua tese “Os
Peregrinos do Divino Pai Eterno: Os Carreiros e a Reprodução Social da Traição, comenta:
No final do século XVIII a romanização, um movimento organizado pelo
clero europeu, tendo como base o Concílio de Trento, realizado no século
XVI, foi uma maneira de impor ao homem do sertão um tipo bem definido
de catolicismo. A finalidade era controlar a religiosidade popular, proibindo
assim as manifestações espontâneas do povo simples, consideradas pelo
clero como abusos e superstições. (MARTINS, 2001, P. 99)
A Romaria do Divino Pai Eterno se destaca não apenas por sua grandiosidade, mas
também pelas peregrinações que os romeiros realizam, saindo de suas cidades até a Basílica Santuário do Divino Pai Eterno. No que diz Martins (2001, p. 83) “A peregrinação está ligada desde a antiguidade ao sentido de caminhada. A experiência de fé leva o crente a iniciar um processo de desacomodação em direção ao mistério”.
O costume de peregrinar a lugares sagrados é antigo e existe em quase todas as
religiões. No cristianismo, há inúmeros relatos na bíblia sobre peregrinações. As jornadas
exigem sacrifícios. Na Romaria de Trindade, os romeiros motivados pela fé no Divino Pai
Eterno enfrentam vários obstáculos para chegar à capital da fé.
Uma das marcas registradas da Romaria de Trindade é a presença dos carreiros,
famílias que se deslocam de suas cidades utilizando carros de bois. Preservando uma tradição que tem origem desde as primeiras peregrinações, trazendo consigo seus pedidos particulares e pagamento de promessas. No que diz Martins (2001, p. 93) “A caminhada longa conduzindo o carro de boi e a família é uma grande responsabilidade, mas pelo valor que ele dá ao sacrifício torna-se uma atividade normal”.
A Romaria de Trindade é marcada por uma mistura entre o profano e o sagrado. Há
momentos de silêncio e meditação, mas também se apresenta momentos de descontração
entre os viajantes. Segundo Martins (2001):
Na caminhada acontece um ritual mais profano do que sagrado. A
preocupação com o próprio sustento carregando alimentos com sobra para ir
e voltar, a bebida da aguardente por um grupo de jovens e a roda de amigos
para contar piadas e rirem a vontade, o grupo cowntry com suas
particularidades da música e do romance, os jogos com cartas de baralho em
sua diversidade marcam o lado profano da romaria. Apenas alguns
comportamentos explícitos marcam o sagrado: as orações pela manhã,
quando saem em caminhada, e as celebrações realizadas no final de cada dia,
quando todos estão preparados para o descanso da noite. (Martins, 2001, p.
132)
No que diz respeito à presença do profano, pode-se dizer que a festividade atraí
também peregrinos que buscam interagir com outras pessoas. Outro ponto a se observar é a relação entre a religiosidade e o consumismo, haja visto que muitos romeiros aproveitam da ocasião para desfrutar do comércio local. A dimensão do sagrado se baseia no espírito, nas relações entre o indivíduo e o divido.
A devoção ao Divino Pai Eterno se consolidou como um dos pilares da fé católica em
Goiás. Uma devoção que começou pela fé de um casal em uma imagem encontrada, deu
origem à maior peregrinação do centro-oeste e a segunda maior do Brasil, reunindo milhões de pessoas anualmente. A festividade religiosa cria uma conexão entre os diferentes romeiros com o sagrado. O evento também possibilita a socialização entre os peregrinos. Com isso, a Romaria do Divino Pai Eterno, une aspectos profanos e sagrados.
REFERÊNCIAS
CARVALHO, Marcia Alves Faleiro de. A Romaria do Divino Pai Eterno em Trindade de
Goiás: Permanências da Tradição na Modernidade (1970-2000). 2007. 105 f. Dissertação
(Mestrado em Ciências Humanas) - Pontifícia Universidade Católica de Goiás, GOIÂNIA,
2007. Disponível em: <https://tede2.pucgoias.edu.br/handle/tede/979>. Acesso em: 28 abril. 2024.
MARTINS, João Otávio. OS PEREGRINOS DO DIVINO PAI ETERNO OS
CARREIROS E A REPRODUÇÃO SOCIAL DA TRAIÇÃO. 2001. 185 f. Dissertação
(Mestrado em Ciências Humanas) - Pontifícia Universidade Católica de Goiás, GOIÂNIA,
2001. Disponível em: <https://tede2.pucgoias.edu.br/handle/tede/923>. Acesso em: 28 abril. 2024.
FEITOSA, Larrisa. Romaria de trindade: 3,6 milhões participam da Festa do Divino Pai
eterno.g1Goiás,2023.Disponívelem<https://g1.globo.com/go/goias/noticia/2023/07/03/romaria-de-trindade-36-milhoes participam-da-festa-do-divino-pai-eterno.ghtml>. Acesso em: 28 abril. 2024.

Emerson Ribeiro é mestrando em Ciências Sociais e Humanidades pelo Programa de Pós-Graduação em Territórios e Expressões Culturais do Cerrado, da Universidade Estadual de Goiás. Suas pesquisas se debruçam sobre violência urbana e aspectos culturais da valentia.
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