ROMÃOZINHO: TRADIÇÃO, TRANSGRESSÃO E RESISTÊNCIA NA CULTURA POPULAR GOIANA
- teccernusacer
- há 5 dias
- 5 min de leitura
Douglas Pereira de Sousa
“Romãozinho é a expressão viva da cultura popular, onde o medo e a moral se
entrelaçam para ensinar e preservar a memória do povo.” (QUERINO, 1928)

Introdução
Entre os personagens lendários do imaginário popular brasileiro, o Romãozinho se destaca como uma figura controversa e profundamente enraizada na cultura oral do Centro-Oeste, especialmente em Goiás. A lenda de um menino amaldiçoado que, por desobediência e crueldade, foi condenado à eternidade é mais do que uma simples história assustadora contada às crianças. Ela carrega em si significados simbólicos, morais e históricos que revelam aspectos das relações sociais, da religiosidade e da pedagogia tradicional do interior goiano. Este trabalho tem como objetivo analisar a lenda do Romãozinho como expressão da cultura popular goiana, observando sua origem, suas versões e as funções socioculturais que desempenha na manutenção de valores comunitários, na construção de identidades e na resistência simbólica diante das transformações culturais.
A Lenda de Romãozinho: Origem e Narrativa
A lenda do Romãozinho narra a história de um menino travesso e cruel, filho único de uma mulher simples. Certa vez, sua mãe pede que ele leve comida ao pai que trabalhava na roça. No caminho, Romãozinho come a refeição, mata um passarinho, coloca no lugar da carne e mente para o pai. Ao descobrir o ocorrido, a mãe o amaldiçoa: “Você nunca há de crescer e nunca há de morrer”. A partir disso, ele se torna uma entidade errante, condenado a vagar pelas ruas, assustando pessoas, provocando confusões e interferindo no cotidiano dos vivos.
A origem da história é incerta, como quase toda narrativa do folclore oral. Como afirma Querino (1928), Romãozinho é a expressão viva da cultura popular, onde o medo e a moral se entrelaçam para ensinar e preservar a memória do povo. Ele surge nesse contexto como um instrumento pedagógico e simbólico, cuja figura é passada de geração em geração, adaptando-se às transformações da sociedade goiana, mas mantendo sua essência transgressora.
Funções Sociais e Pedagógicas
No interior de Goiás, como em muitas regiões do Brasil, as lendas cumprem papel pedagógico. O Romãozinho é um exemplo claro de como o medo é utilizado como mecanismo de educação informal. Ele representa a punição pela desobediência, a crueldade e a mentira. Em sociedades tradicionais, onde a autoridade dos pais e a moral cristã são pilares, a lenda opera como reforço à disciplina e ao respeito familiar.
Como explica Câmara Cascudo (2012), o folclore brasileiro atua como instrumento de controle social, transmitindo normas e valores através de narrativas orais que refletem a moral da comunidade. Nesse sentido, a figura de Romãozinho não apenas assusta, mas educa, moldando comportamentos esperados desde a infância.
Segundo Teles (1998), “a criança, no imaginário popular brasileiro, só se torna cidadã plena ao se submeter à disciplina dos adultos; rebelar-se é se aproximar do demoníaco”. A maldição lançada pela mãe de Romãozinho não é apenas castigo: é também advertência. A figura do menino que nunca cresce nem morre simboliza o perigo da estagnação moral, da permanência no erro, da falta de redenção.
Comparações com Outras Entidades do Folclore
É interessante comparar Romãozinho com outras figuras do folclore brasileiro, como o Saci-Pererê e o Curupira. Assim como o Romãozinho, o Saci também é travesso, prega peças e vive na floresta. Contudo, o Saci tem uma dimensão mais ambígua: é brincalhão, mas não necessariamente maligno. Já o Curupira, com seus pés virados para trás, protege a natureza e pune caçadores — sua função é mais ligada à justiça.
Romãozinho, por outro lado, é visto com mais temor: ele não protege nem ri — ele assombra, desafia e pune sem critério aparente. Sua figura é menos heroica e mais transgressora. Enquanto o Curupira protege, Romãozinho perturba. Esse contraste revela a riqueza simbólica do folclore, que comporta personagens com múltiplas funções sociais e pedagógicas, desde a preservação da natureza até o controle do comportamento infantil.
Embora tradicionalmente associado à desobediência e ao mau comportamento, Romãozinho também pode ser lido como figura de resistência. Em algumas versões, ele prega peças em fazendeiros, patrões e figuras de autoridade, especialmente aquelas que exploram os mais pobres. Assim, a lenda se torna veículo de crítica social. Como defende Zumthor (1990), “a voz da oralidade é o lugar da resistência simbólica frente à opressão das instituições”.
A permanência de Romãozinho no imaginário popular pode ser interpretada como sinal de que a cultura goiana — mesmo diante da urbanização e da globalização — resiste em manter suas raízes. A lenda transforma-se em espaço de contestação, onde os pequenos vencem os grandes, os marginais desafiam os poderosos e o medo torna-se instrumento de narrativa.
O Romãozinho na Educação e na Literatura
Atualmente, a figura do Romãozinho aparece com frequência em livros didáticos regionais, projetos pedagógicos e atividades culturais. Muitas escolas públicas de Goiás utilizam a lenda como ferramenta interdisciplinar, envolvendo literatura, história e cultura local. Peças teatrais, dramatizações e quadrilhas temáticas também incluem o personagem como forma de preservar e difundir o patrimônio imaterial.
Na literatura, autores como Bartolomeu Campos de Queirós e Luciana Savaget já retomaram a figura do Romãozinho em releituras modernas, mostrando que o personagem segue sendo relevante. Como afirma Borges (2007), “as lendas do cerrado, quando recontadas com olhar crítico, oferecem elementos potentes para o letramento cultural e o desenvolvimento da identidade regional”.
A presença do Romãozinho em roteiros turísticos e festas populares demonstra que ele não é apenas memória, mas também prática viva. O turismo cultural e a valorização das tradições locais contribuem para que novas gerações conheçam e mantenham viva essa narrativa que é, ao mesmo tempo, aterrorizante e fascinante.
Conclusão
A lenda do Romãozinho é mais do que uma história assustadora do folclore goiano. É uma narrativa complexa, cheia de camadas simbólicas, pedagógicas e políticas. Ela revela como o povo goiano lida com temas como transgressão, infância, autoridade e resistência. Através da oralidade, Romãozinho sobrevive ao tempo e se reinventa, ora como advertência moral, ora como crítica social. Preservar e estudar essas manifestações é essencial para compreender as identidades regionais e fortalecer a cultura popular diante das pressões homogeneizantes do mundo contemporâneo. O menino que não cresce nem morre continua vivo na memória coletiva — não apenas como lenda, mas como símbolo de um povo que se recusa a esquecer.
Referências
BORGES, Marco Aurélio. Folclore do cerrado: narrativas, memória e identidade. Goiânia: UFG, 2007.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. São Paulo: Global, 2012.
QUERINO, Manuel. Cultura popular brasileira: tradição e transformação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1928.
TELES, Maria de Fátima. Infância e folclore no Brasil. Rio de Janeiro: Vozes, 1998.
ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. São Paulo: Brasiliense, 1990.

Douglas Pereira De Sousa é graduando de História do Campus CSEH Nelson De Abreu Júnior de Anápolis.




Comentários