Por que é fundamental falar sobre os indígenas.
- teccernusacer
- 21 de ago. de 2024
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Por Poliene Soares dos Santos Bicalho.

“Mamãe, por que em todas as suas reuniões, você só fala sobre os indígenas?” Esta pergunta foi-me dirigida meu filho de onze anos em um dia desses, logo após ouvir uma mensagem de áudio que acabara de enviar a uma orientanda de mestrado. Embora pudesse parecer simples e óbvia, a resposta saiu com certo gaguejo, um tanto vaga e com consistência duvidosa, em se tratando, a interrogada, de, além de mãe, pesquisadora há quase vinte da história do Movimento Indígena no Brasil.
O fato é que a pergunta é mais capciosa do que aparenta, afinal, por trás dela há muitas outras questões nada despretensiosas e ingênuas, como normalmente são as perguntas das crianças. Não quero com isso dizer que o meu filho arquitetou, conscientemente, uma questão-problema muito mais complexa do que se poderia esperar dele, muito menos quero fazer crer que ele é um super dotado ou coisa do gênero. Ao contrário, a sua pergunta é apenas uma indagação ingênua e despretensiosa de criança, mas a recepção dela por mim não o foi. E, por isso, gaguejei na resposta.
Meu pequeno, então, despertou em minha mente inquieta uma enxurrada de questionamentos com a sua dúvida singela: Quantos outros, ao me ouvirem falar sobre os indígenas, pensaram/pensam em me fazer a mesma pergunta, mas com uma formulação no mínimo mais impetuosa, do tipo, “por que você fala tanto de índio (meu rapazinho já usa a terminologia ‘indígena’), não tinha mais nada para estudar não?” Ou, com um pouco menos de impetuosidade (para não dizer outra coisa...), “o que há de tão interessante nesses indígenas para você só falar deles?”.
A ordem dos fatores aqui não altera o produto. A ingenuidade de uma criança com seus porquês incontroláveis, em geral disciplinada para ir desaparecendo à medida que a infância se esvai, nos diz mais ou pode nos fazer pensar muito, se ouvirmos atentamente o que elas dizem, o que poucos adultos conseguem fazer nessa nossa pseudo “civilização” em que vivemos. Essa digressão me fez lembrar o Pequeno Príncipe, quando ele fala dos adultos como aqueles que estão sempre às voltas com os números, as contas, e acham que ‘dominar’ esses dados matemáticos exatos das coisas é mais importante que ouvir o coração e ver o essencial das pessoas. Nas palavras de Antoine de Saint-Exupéry (2004, p. 49) está dito assim: “as pessoas grandes adoram os números. Quando a gente lhe fala de um novo amigo, elas jamais se informam do essencial”, como: “...ele coleciona borboletas?”; ao contrário, perguntam “a sua idade”, “quanto ganha o seu pai”, e por aí vai.
As crianças, e isso não tem nada a ver com idade, com seus modos simples e curiosos de olhar o mundo à sua volta, de se inquietar, de questionar o que escutam e vêem, são muito mais complexas do que aparentam aos olhos daqueles cuja infância morreu no auge de seus oito anos, numa clara alusão ao poema de Casimiro de Abreu, Meus oito anos, escrito em junho de 1858. E assim eu gostaria de voltar à pergunta do meu primogênito. Comecemos por sua coragem em perguntar algo que ele sabia ser caro para mim, e que poderia me deixar ‘brava’ pelo simples ato de ter formulado a pergunta. Mas, naturalmente, ele falou o que o inquietou naquele momento, ou já o estivesse inquietando há muito tempo. Falou, perguntou e pronto, tudo bem! Sem olhares dissimulados, sem soslaios, sem aquela perturbação incômoda que muitos deixam escapar de algum modo quando escutam coisas que não lhes são atrativas.
Sejamos sinceras e sinceros, falar de indígenas no Brasil e em muitas outras partes do mundo incomoda, e muito, muita gente, ainda, no século XXI, infelizmente. Mas eu devolvo a pergunta do meu João Heitor para o mundo: por quê? Sim, isso mesmo, por que falar de indígenas incomoda tanta gente? E por que não, por que não falar de indígenas? O que há de tão ruim nisso? Afinal, falar de indígenas é como realizar uma espécie de anamnese completa sobre a nossa própria origem, história, hábitos, costumes etc. etc. etc., da cultura à própria constituição biológica de cada um de nós, originários de um país cuja ancestralidade é inquestionavelmente indígena.
Será que de nada adiantou – ou quase de nada – os empenhos literários dos modernistas do início do século XX ao trazer à baile tantos manifestos e leituras da nossa origem indígena? E quem duvida disso que atire a primeira cabaça, uma mandioca também serve, ou ainda, leiam a entrevista do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, intitula “No Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é” (2006, originalmente publicada no livro Povos Indígenas no Brasil 2001/2005).
Ou será que é por que falar de indígena é ter que aceitar essa realidade, essa mesma, de que nossa origem Tupi ou Macro-Jê predominantemente, entre outros troncos linguísticos indígenas existentes no Brasil, e que o primitivo (de primevo, primeiro) vive em nós, nessa sociedade brasileira, que é tudo, menos monolinguíssima e monocultural. Mas, vamos às respostas mais didáticas – no melhor sentido do termo – à pergunta inicial do meu filho (que, como já disse, incomoda muita gente adulta, algumas bem formadas, tituladas até):
Sim, eu falo muito sobre os indígenas por que eu sou brasileira, e o Brasil é originalmente indígena, essencialmente, o seu núcleo, o seu magma, a sua cor, a sua base, a sua linha e a sua costura é indígena, e as pessoas precisam entender isso. Conhecer esse Brasil indígena profundo é se reconhecer e, consequentemente, é conviver com mais respeito e estima mútua. Infelizmente, grande parte da população brasileira ainda desconhece e/ou não deseja se reconhecer nessa realidade, o que agrava a violência, as agressões – físicas e morais – e as violações de direitos desses povos em nosso território brasileiro;
Sim, é necessário falar, estudar, ler mais sobre e conviver com eles, que correspondem a uma população de 1.693.535 milhão de indígenas no país (IBGE, 2022), e que se subdivide em 305 povos diferentes entre si, quanto à língua falada, à cultura praticada e às experiências de contato estabelecidas com os não indígenas desde 1500 até os dias de hoje, por isso, é fundamental conhece-los em sua diversidade. E por ocuparem esse grande continente chamado América há milhares de anos, e o Brasil Central há mais de 12 mil anos atrás, é fato passivo e indubitável que nós somos também indígenas, logo, precisamos nos apropriar dessa nossa ancestralidade sem medo, sem vergonha, sem pudores, sem amarras, sem racismo, sem preconceito, sem falso moralismo, sem dogmas, sem violência, sem agressão, sem desrespeito;
Sim, falo muito sobre os povos indígenas por que é assustador, diante de todas essas incontestáveis evidências, a perpetuação da ignorância e da consequente assimetria nas relações cotidianas, e também em nível de setores públicos e privados, no que tange às populações indígenas e não indígenas, especialmente quanto aos seus direitos ao território, que é sagrado, que é vida. Pergunto-me, na condição de estudiosa do tema e professora de História, até quando o discurso da liderança indígena Ailton Krenak – já imortal antes de a Academia Brasileira de Letras o reconhecer como tal em 2023 – durante uma das sessões da Constituinte de 1987 no Congresso Nacional, em 1987, permanecerá tão atual??? Fiquemos aqui apenas com o finalzinho, a título de indignação e solidariedade: “O povo indígena tem regado com sangue cada hectare dos oito milhões de quilômetros quadrados do Brasil” (Trecho retirado do discurso de Ailton Krenak, na Câmara dos Deputados, 1987).
Por fim, como mulher, mãe, professora, historiadora, brasileira, gente e parte ínfima desse imenso cosmos chamado natureza, eu não posso me calar diante das injustiças, da hipocrisia, da ignorância e da violência travada, secularmente, contra as populações indígenas no meu país. Não é apenas uma pesquisa de doutorado e uma série de artigos publicados sobre o tema, não é, não pode ser! Como uma espécie de entidade que recebe e vivencia esses múltiplos papéis sociais, eu, Poliene Soares dos Santos Bicalho, pesquisadora e estudiosa da temática indígena, tenho a obrigação de continuar falando deles e sobre eles o pouco que sei... Por que falar dos e sobre os indígenas é também falar de mim, da cultura que me cerca e que me habita; é reconhecer sua beleza como também minha; é ouvir os seus clamores e ajudar a ecoa-los; é participar de sua luta história – ainda que com os meus parcos recursos e condições – por sobrevivência, por se fazer ouvir e respeitar; é compreender e assumir que suas lutas são nossas também, afinal, sem terra indígena demarcada e não invadida, há poucas perspectivas de Cerrado e Amazônia de pé em um futuro não tão distante assim. Menciono esses biomas/domínios intencionalmente, para ficarmos na questão ambiental apenas, que, para o bom sabedor, é fulcral para a nossa sobrevivência nessa dimensão extraordinária que é a Terra.
Referências:
ABREU, Casimiro. Meus Oito anos, 1858. Academia Brasileira de Letras. In: <https://www.academia.org.br/academicos/casimiro-de-abreu/textos-escolhidos>. Acesso: 14/02/2024, 11:09h.
BRASIL. IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. População Indígena. Brasil tem 1,69 milhão de indígenas, aponta Censo 2022. In: <https://www.gov.br/secom/pt-br/assuntos/noticias/2023/08/brasil-tem-1-69-milhao-de-indigenas-aponta-censo-2022#:~:text=O%20Brasil%20tem%201.693.535,feira%20(7%2F8)>. Acesso: 14/02/2024, 11:31h.
CASTRO, Eduardo Viveiros de. [Entrevista] “No Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é”. Povos Indígenas do Brasil, 2006. In: <https://pib.socioambiental.org/files/file/PIB_institucional/No_Brasil_todo_mundo_%C3%A9_%C3%ADndio.pdf>. Acesso, 14/02/2024, 11:11h.
DISCURSO DE AILTON KRENAK, EM 4/09/1987, Na Assembleia Constituinte, Brasília, BRASIL3'26'', 1987. Revista GIS, vol. 4, 2019. Discurso de Ailton Krenak, em 4/09/1987, na Assembleia Constituinte, Brasília, Brasil.
SAINT-EXUPÉRY, Antoine de. O Pequeno Príncipe. Rio de Janeiro: Agir, 2004 (Tradução de Dom Marcos Barbosa).
Poliene Soares dos Santos Bicalho possui graduação em História pela Universidade Federal de Goiás (2000), mestrado em História pela Universidade Federal de Goiás (2003) e doutorado em História pela Universidade de Brasília (2010). Atualmente é professor titular da Universidade Estadual de Goiás e Coordenadora do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu Interdisciplinar em Territórios e Expressões Culturais no Cerrado. Tem experiência na área de Antropologia, com ênfase em Interdisciplinar, atuando principalmente nos seguintes temas: indígenas, movimento indígena, Cerrado, artes indígenas e Ditadura Civil-Militar e Indígenas. Líder do Grupo de Pesquisa SABERES, SOCIEDADE E NATUREZA NO CERRADO.
Currículo Lattes:
http://lattes.cnpq.br/8387718307836391
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