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PENSANDO EM MATEMÁTICA NO CERRADO GOIANO

Danyella Cristina Machado Teixeira


"Toda cultura tem sua matemática."

D’Ambrosio (1990)


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O século XXI, que se encerrará em 31 de dezembro de 2100, ainda parece distante, mas o tempo disponível para promover mudanças significativas é relativamente curto. Neste contexto, surge a necessidade de refletir sobre o que tem sido produzido acerca do bioma Cerrado, especialmente quando se busca integrá-lo à Educação Formal.

O Cerrado enfrenta um processo acelerado de degradação ambiental, marcado pela perda de biodiversidade e de território, decorrente do crescimento populacional e da globalização. Ao mesmo tempo, esse cenário oferece uma oportunidade única para repensar o ensino de matemática de forma contextualizada, permitindo que os elementos naturais dos biomas sirvam como recurso pedagógico para práticas interdisciplinares que promovam a aprendizagem significativa e a consciência crítica.

O que o Cerrado nos mostra sobre a matemática? revela que a Matemática está presente em todos os aspectos da natureza e da cultura. Os padrões geométricos das folhas, flores e frutos, a simetria encontrada em plantas e animais, e os ciclos de floração, frutificação e estações do ano são manifestações concretas de conceitos matemáticos como geometria, proporção, periodicidade e sequências. Além disso, a observação da diversidade de espécies e de eventos naturais permite a aplicação de noções de estatística e probabilidade, enquanto os saberes tradicionais incorporam padrões e contagens que conectam a cultura local à Matemática. Dessa forma, o Cerrado mostra que a Matemática não é apenas uma abstração, mas uma linguagem capaz de descrever e compreender o mundo que nos cerca.

Um exemplo dessa integração é a MATOMÁTICA, ou “Matemática do Mato”, proposta pelo Museu do Cerrado, na qual se relaciona a quantidade de folíolos das folhas de diferentes árvores a números específicos, permitindo observar conceitos matemáticos diretamente na natureza (Museu do Cerrado, 2025).

As folhas são elementos essenciais das plantas, realizando fotossíntese e transpiração, processos que transformam a energia solar em alimento, permitindo o crescimento e a produção de frutos. O limbo, que corresponde à parte laminar da folha, pode apresentar-se simples, quando indiviso, ou composto, quando subdividido em unidades chamadas folíolos, que são as subdivisões de uma folha composta. Cada folíolo funciona como uma pequena “folha” dentro da folha maior, contribuindo para a fotossíntese e a estrutura da planta. Entre as folhas compostas, podem-se identificar diferentes tipos: as imparipenadas, que apresentam um número ímpar de folíolos com apenas um terminal; as paripenadas, que possuem um número par de folíolos, com dois na extremidade; e as digitadas ou palmadas, em que todos os folíolos partem de um mesmo ponto do pecíolo, lembrando os dedos de uma mão. Algumas espécies apresentam folhas duplamente compostas, chamadas recompostas, cujos folíolos também se subdividem (Museu do Cerrado, 2025).

A Matomática estabelece uma relação entre cada árvore e a quantidade de folíolos de suas folhas, possibilitando não apenas a identificação de espécies, mas também o estudo de padrões, sequências e simetrias presentes na flora do Cerrado. Por exemplo, o Araticum possui um folíolo, o Pequi três e os Ipês podem ter três, cinco ou sete folíolos, dependendo da espécie (Museu do Cerrado, 2025). Esse sistema evidencia que a matemática não está restrita a números e fórmulas abstratas, mas está presente na própria estrutura da natureza, permitindo observar regularidades, proporções e simetrias que conectam o conhecimento científico ao cotidiano do bioma Cerrado. Além de seu valor matemático, essas árvores têm relevância ecológica e cultural: o Araticum é consumido localmente e utilizado em doces e sorvetes; o Pequi possuem importância alimentar (Silva Júnior, 2005; Almeida et al., 1998).

No contexto social e cultural, conforme proposto por Ubiratan D’Ambrosio (2021), a Matemática também se manifesta nas relações humanas e na forma como as comunidades do Cerrado organizam sua vida cotidiana. Essa “Matemática do Cerrado” se revela nas práticas agrícolas, no uso equilibrado dos recursos naturais e até nas construções tradicionais, que obedecem a proporções e medidas herdadas do conhecimento ancestral. D’Ambrosio denomina o estudo dessas manifestações de Etnomatemática, uma abordagem que amplia o olhar para além da matemática escolar formal, incorporando práticas cotidianas, artesanais, regionais e sociais como expressões legítimas do saber matemático.


Etnomatemática é a matemática praticada por grupos culturais, tais como comunidades urbanas e rurais, grupos de trabalhadores, classes profissionais, crianças de uma certa faixa etária, sociedades indígenas, e tantos outros grupos que se identificam por objetivos e tradições comuns aos grupos (D’ AMBROSIO, 2021 p. 9).


O matemático Paulus Gerdes (2010), importante nome da etnomatemática, contribuiu para essa compreensão em sua obra Geometria e Cestaria dos Bora na Amazônia Peruana. Nela, ele analisa os padrões geométricos presentes nos trançados e cestos produzidos pelos povos Bora, mostrando como o conhecimento matemático está profundamente enraizado nas práticas culturais. Gerdes destaca que formas, simetrias e proporções não são apenas conceitos abstratos, mas expressões de identidade e saber tradicional um pensamento que dialoga diretamente com a “Matomática” do Cerrado, onde o aprendizado matemático nasce da observação e do fazer cotidiano.

Boaventura de Sousa Santos (2024), em sua obra O Fim do Império Cognitivo: A Afirmação das Epistemologias do Sul, propõe uma crítica ao domínio do pensamento eurocêntrico, que historicamente marginalizou saberes originados em contextos não ocidentais. Ele argumenta que a verdadeira justiça social global só será alcançada quando houver uma justiça cognitiva global, ou seja, quando os conhecimentos produzidos no Sul global forem reconhecidos e valorizados. Essa perspectiva se alinha com a proposta de D’Ambrosio, ao destacar a importância de reconhecer e valorizar os saberes locais e tradicionais, como os encontrados no Cerrado, que oferecem soluções sustentáveis e adaptadas às realidades locais.

Assim, refletir sobre a Matemática no Cerrado Goiano nos permite compreender que o conhecimento matemático vai muito além das salas de aula e das fórmulas abstratas. Ele está presente na natureza, nas práticas culturais e nas relações sociais, revelando padrões, proporções e regularidades que dialogam com a vida cotidiana das comunidades locais. Reconhecer e valorizar esses saberes, como propõem D’Ambrosio e Boaventura de Sousa Santos, contribui para a construção de uma educação mais plural, intercultural e conectada com o meio ambiente, na qual a matemática deixa de ser vista apenas como disciplina escolar e se torna uma ferramenta para compreender, respeitar e preservar os biomas e as culturas que deles dependem.




REFERÊNCIAS


D’AMBROSIO, Ubiratan. Etnomatemática: elo entre as tradições e a modernidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.


GERDES, Paulus. Geometria dos trançados Bora na Amazônia peruana. São Paulo: Livraria da Física, 2010.


SANTOS, Boaventura de Sousa. O fim do império cognitivo: a afirmação das epistemologias do Sul. 4. reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2024.


MUSEU DO CERRADO. Matomática – Matemática do Mato. Disponível em: https://museucerrado.com.br/educacao/alfabetizacao-ecologica-abcerrado/matomatica/. Acesso em: 09 Ago. 2025.


ALMEIDA, S. P.; PROENÇA, C. E. B.; SANO, S. M.; RIBEIRO, J. F. Cerrado: Espécies vegetais úteis. Planaltina: EMBRAPA-CPAC, 1998.







Danyella Cristina Machado Teixeira
Danyella Cristina Machado Teixeira

Danyella Cristina Machado Teixeira é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Territórios e Expressões Culturais no Cerrado (TECCER) da Universidade Estadual de Goiás (UEG). Possui pós-graduação em Libras pela Associação Brasileira de Ensino Universitário (Uniabeu) e licenciatura em Matemática pela UEG. Suas pesquisas e práticas pedagógicas exploram a integração entre Educação, Cultura e Ciências, com foco no desenvolvimento de metodologias inclusivas e interdisciplinares.


 
 
 

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