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O CERRADO, OS CERRADOS E OS CERRADEIROS: protagonistas de uma história que tem próximo o seu fim

por Charles Lima



O Cerrado é uma savana que se estende diagonalmente no centro do território brasileiro, apresentando-se em extensão, como o segundo maior bioma brasileiro. Suas particulares características fazem desse bioma, um celeiro de biodiversidade, que atingiu seu clímax evolutivo e que sustenta serviços ecossistêmicos para todo um país. Sua vegetação escleromórfica[1], adaptada aos solos pobres em nutrientes e com altas concentrações de alumínio, apresenta-se em quatorze fitofisionomias[2]; o que torna esse bioma um mosaico de vida que se sustenta através das suas surpreendentes adaptações, como ao fogo, por exemplo.

Possui elevada biodiversidade, com expressiva riqueza, abundância e endemismo de espécies; no entanto, é classificado como um hotspot[3] mundial, por ser uma das regiões do planeta que mais sofre devastação de suas áreas nativas, para abrir espaço à implantação de uma lógica desenvolvimentista antropocêntrica que busca atender as demandas agropastoris (DUTRA, SOUZA, 2017).

Suas fronteiras fazem também divisas com outros biomas brasileiros, como a Floresta Amazônica, a Mata Atlântica e o Pantanal Mato-grossense, que são considerados pela Constituição Federativa do Brasil de 1988, Patrimônios Nacionais (BRASIL, 1988). Diante destes biomas protagonizados pela Constituição, o Cerrado apresenta-se desde então uma vaga proteção legislativa, que o coloca ainda mais em risco.

Sua ausência no rol constitucional do §4°, do art. 225, faz com que a inovação que a Constituição Federal de 1988 trouxe ao dedicar um capítulo para o “Meio Ambiente”, não seja totalmente ao “Meio Ambiente”, mas sim para alguns ambientes, que foram estrategicamente escolhidos (DIAS; MIZIARA, 2021). Diante desse descaso legal, verifica-se que o seu valor excepcional, tanto material quanto imaterial, estão ainda mais próximos da extinção do que as mais otimistas conclusões podem afirmar.

Os povos do Cerrado, com sua diversidade histórica, social e cultural, entre eles os indígenas, os quilombolas e os vazanteiros, por exemplo, se terrritorializaram nas áreas que compreendem este bioma e construíram ao longo do tempo formas de vida e relações únicas, que estão intimamente relacionadas à natureza regional. Sendo assim, quando se pensa na possibilidade de extinção do bioma, pensa-se também no desaparecimento de toda uma gama de relações e conhecimento etnográfico acumulado historicamente por estas populações tradicionais (DUTRA; SOUZA, 2017).

Assim remeter aos povos do Cerrado é destacar inúmeras relações e interações que estas populações possuem, guiado por práticas culturais, sociais, econômicas e de trabalho que têm como base a natureza, sendo esta a fonte elementar dos seus valores humanos, no entanto, com o desaparecimento da cobertura natural desse bioma, há também a extinção destes povos que milenarmente apresentam-se como os povos tradicionais do Cerrado (OLIVEIRA, 2008).

Na verdade, os cerradeiros forjaram suas raízes na relação recíproca com o Cerrado, portanto ao se degradar a terra, se destrói os recursos naturais, esses povos e toda a gama de relações que possuem com o território físico e imaterial (OLIVEIRA; HESPANHOL, 2012), afinal há um artefato humano e fruto de uma longa e intensa história (MELO; ARAÚJO, 2020).

Historicamente, por exemplo, os povos indígenas Xavante, foram obrigados a se direcionarem para outros territórios com o intuito de se refugiarem, pois não queriam contato com os brancos, no entanto, em 1930 o interesse por suas terras motivou a redescoberta desses povos e com isso o seu isolamento foi ameaçado; assim o território Xavante tornou-se uma ilha de Cerrado em meio a vastidão dos cultivos de soja e outras monoculturas (GOMIDE; KAWAKUBO, 2006), como se observa na figura a seguir:


Figura 1: Mato Grosso – Brasil e o uso e cobertura da terra nos municípios que estão próximos a TI Sangradouro / Volta Grande no ano de 2019 (MOTA JÚNIOR; SILVA, 2021).


Pode-se também citar as inúmeras narrativas que são apresentadas por mulheres camponesas e indígenas do Cerrado, que demonstra a implantação do sofrimento por parte da violência fundiária, uso de agrotóxicos e desmatamento, a fim de manter a expansão das áreas de cultivo de soja (SANTOS; VENÂNCIO-JÚNIOR; BENINI, 2020).

E neste cenário os direitos como ordem da conduta humana e presentes na Carta Magna, art.23, §6, “entende como sendo de competência dos entes federativos ao proteger o meio ambiente”; art.24, “que compete a tais o dever de legislar de forma concorrente no que tange: §6, proteger o meio ambiente ... e, §7, “proteger o patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico”; e §8, responsabilização por dano ao meio ambiente, por exemplo (BRASIL, 1988), e por fim o caput do art. 225, onde se encontra a máxima de que “todos têm direito ao meio ambiente equilibrado (...)” (BRASIL, 1988) (Grifo meu).

Portanto, diante das realidades em que o Cerrado e os cerradeiros vêm ao longo do tempo enfrentando, a ausência deste bioma no texto constitucional serve como ponto de partida para se realizar alguns questionamentos, como: quem são esses todos? Os povos tradicionais também estariam incluídos no sentido literal e real desse termo? De forma concorrente, quem seriam os responsáveis? E por fim, quem estaria disposto a mudar essa realidade? É conveniente para alguém defender este bioma?

Afinal, as violações com o Cerrado reafirmam a questão de que aos olhos de alguns os interesses e direitos de todos, são vistos como a maneira de atender alguns que detém a ordem e o poder; desse modo os povos do Cerrado, estão à mercê da degradação deste (seu) bioma. Assim, os direitos humanos dos cerradeiros, e de todos que são beneficiários direitos e indiretos da ecologia, preservação e conservação do Cerrado, estão sendo nitidamente negligenciados, assim como o bioma em questão. É claramente identificável que os povos tradicionais do Cerrado vêm sofrendo com sua intensa devastação, onde repousa toda a sabedoria, os saberes de seus ancestrais e sua tradicionalidade (HIRDES; LIMA; SOUZA, 2020).

Já houve alguns interesses pontuais entre os anos de 1995 a 2010, onde oito projetos de emenda constitucional buscaram incluir o Cerrado no §4, do art. 225, da Constituição Federal, no entanto, mais uma vez este bioma foi esquecido, engavetando todas essas propostas com a justificativa de não terem atingido um efeito concreto (DIAS; MIZIARA, 2021). Mas, será que destruir um dos biomas mais biodiversos do planeta, que possui protagonismo na sustentação ecológica de outros biomas que são supervalorados e supervalorizados historicamente, não seria um efeito concreto, com causalidade e justificativa que atende aos objetos apresentados pelas PEC’s?

Assim ao olhar para os direitos humanos em sua totalidade, que possuem o dever de “proteger as pessoas dentro das circunstâncias em que vivem, valorizando a dignidade humana, proteção dos direitos e liberdade” (SILVEIRA, 2022, p.32), e se voltar para a destruição do Cerrado, dos Cerrados e dos cerradeiros que vertiginosamente atinge taxas cada vez maiores, e que se encontra pressionado perante a ausência de política ambiental de estado que resulte em eficazes medidas de conservação e preservação (FERNANDES, 2016); uma forma de fazer com que a omissão seja uma justificativa para se criar meios que não justifica os fins, ou mesmo discursos e propagandas que buscam encobrir as realidades?

Portanto, os cerradeiros, assim como o Cerrado, se tornaram reféns de um sistema opressor e sanguinário, que o destrói para manter o desenvolvimento, que não será mantido quando a matriz ambiental se esgotar. Mas de quem é a culpa? E em meio às perdas que doravante vem ocorrendo ao logo da expansão agropecuária, por exemplo, não há meios de se calcular os impactos que a falta de políticas ambientais voltadas para o Cerrado, de negligência do arcabouço jurídico e dos impactos ocorridos na sociobiodiversidade.

Se é para todos e omite alguns, é porque na verdade não se há justiça, e não havendo justiça ocorre um atentado as bases pétreas que regem os direitos e os deveres de todos. A omissão que bioma e os povos do Cerrado sofrem historicamente é uma desculpa que promove a derrubada da vegetação, que ao permitir a ação das correntes que levam o “desenvolvimento”, de forma concorrente colocam-se vendas e grilhões que levam os seus a inanição no presente, pois assim lucrarão com a ausência de um possível futuro.

Portanto, não há discussão que se mantenha em meio ao descaso, há apenas a tomada de atitude que venha de maneira real realizar uma reparação legal, social, econômica, cultural e histórica, enquanto ainda se consegue enxergar uma ilha de vida no meio do Brasil.


NOTAS

[1] Vegetação adaptada a ambientes com disponibilidade de água em regiões profundas do solo. [2] São tipos de vegetação predominantes em um bioma ou em uma região. [3] É uma região que apresenta simultaneamente elevada biodiversidade e ameaçada de destruição / extinção.


REFERÊNCIAS


BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.


DIAS, D.O.; MIZIARA, F. O Cerrado como patrimônio nacional: A inclusão do Cerrado no §4º do artigo 225 da Constituição Federal. Revista Cerrados, v.19, n.02, p.323-342, jul./dez., 2021.


DUTRA, R.M.S.; SOUZA, M.M.O. Cerrado, revolução verde e evolução do consumo de agrotóxicos. Sociedade & Natureza, v.29, n.3, set.-out., 2017.


FERNANDES, G.W. Cerrado, em busca de soluções sustentáveis. Rio de Janeiro, Vertentes Produções Artísticas, 2016.


GOMIDE, M.L.C.; KAWAKUBO, F.S. Povos indígenas do Cerrado, territórios ameaçados: Terras Indígenas Xavante de Sangradouro/Volta Grande e São Marcos. Agrária, n.3, p.16-46, 2006.


HIRDES, Y.T.; LIMA, M.C.; SOUZA, D.R. RAÍZES: Grande Encontro dos povos e medicinas tradicionais. Cadernos de Agroecologia, Anais - XI Congresso Brasileiro de Agroecologia, v.15, n.2, 2020.


MELO, P.B.; ARAÚJO, E.R. Uso de plantas do Cerrado por agricultores/as do assentamento Pequeno Willian: Biodiversidade herdada de povos indígenas. Cadernos de Agroecologia, Anais - XI Congresso Brasileiro de Agroecologia, v.15, n.2, 2020.


MOTA JUNIOR, E.R.; SILVA, E.B. Fronteira agropecuária e contextos ambientais em terras indígenas no Cerrado. XIV Encontro Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia, 2021. Disponível em: <TRABALHO_COMPLETO_EV154_MD1_SA136 _ID126219112021222357.pdf (editorarealize.com.br)>. Acesso em: 15 jul. 2023.


OLIVEIRA, I.J. O povo do Cerrado: Relações entre população e ambiente no estado de Goiás. GEOUSP - Espaço e Tempo, n.24, p.124 -136, 2008.

OLIVEIRA, R.M.; HESPANHOL, R.A.M. Para além da terra: Acesso ao território e aos frutos da terra pelos povos tradicionais do Cerrado. Ateliê Geográfico, v.6, n.3, Edição Especial, out., p.163-177, 2012.

SANTOS, V.P.; VENÂNCIO-JÚNIOR, D.; BENINI, E.A. “Nós ainda existimos”: testemunhos (d)e resistências de mulheres camponesas e indígenas do Cerrado. Élisée, Revista de Geografia da UEG – Goiás, v.9, n.2, jul./dez., 2020.


SILVEIRA, F.N. 180f. Políticas públicas e comunitárias para a proteção e prevenção da violência doméstica em Jaguarão/Brasil e Rio Branco/Uruguai - Desafios e perspectivas. Tese (Programa de Pós-graduação em Política Social e Direitos Humanos - Universidade Católica de Pelotas – UCPEL), 2022.


Charles Lima Ribeiro é graduado em Ciências Biológicas pelo Centro Universitário de Anápolis- UniEvangélica, como bolsista integral do PROUNI e Pedagogia pela Faculdade de Educação Regional Serrana - FUNPAC; especialista em Tecnologias Aplicadas ao Ensino de Biologia pela Universidade Federal de Goiás-UFG, em Análises Clínicas, Microbiologia e Pedagogia Hospitalar pela Universidade Cândido Mendes, Vigilância em Saúde Ambiental pela Universidade Federal do Rio de Janeiro- UFRJ, Formação de professores para os anos iniciais com ênfase no Ensino de Ciências, no Centro Universitário Cidade Verde -UniFCV; mestre em Ciências Moleculares, área: Química Orgânica, pela Universidade Estadual de Goiás-UEG como bolsista CAPES e doutor em Ciências Ambientais, área: Biodiversidade e Desenvolvimento Sustentável, no Programa de Sociedade, Tecnologia e Meio Ambiente, pela Universidade Evangélica de Goiás- UniEvangélica. Atualmente realiza estágio de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Territórios e Expressões Culturais no Cerrado (TECCER) pela Universidade Estadual de Goiás. Suas pesquisas se debruçam sobre a flora do Cerrado, com foco na família Myrtaceae; microbiologia, com foco em biofilmes; fitoquímica e farmacognosia da flora do Cerrado, educação em ciência e ensino de botânica.


Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8405100729116727

 
 
 

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