O CERRADO ESTÁ NOS OLHOS DE QUEM VÊ
- 26 de set. de 2023
- 6 min de leitura
Atualizado: 2 de out. de 2023
por José Eduardo Alcântara Lima
“Interpretar o Cerrado é pôr o pensamento no real e as mãos na disputa ideológica”[1]

O modo como enxergamos o mundo depende de nosso estado interior, o ser humano projeta na exterioridade o que tem dentro de si. Isso implica um olhar subjetivo do mundo, individual, que interpreta a realidade a partir da bagagem de experiências pré-existente. O modo como enxergamos nossa rua ou casa é simplesmente diferente da experiência que uma visita terá ao passear pelos mesmos espaços. Essa diversidade de vivências sensíveis e afetivas em nada surpreende, afinal, esses locais fazem parte de nossa história. Ali ocorreram eventos alegres, tristes, funestos, as possibilidades são infinitas. Justamente por isso, imprimem em nossa memória traços subjetivos, os quais não existem no mundo do outro. Nessa mesma linha de pensamento, é possível afirmar que o Cerrado se mostra de jeitos únicos para cada um dos seus habitantes, formando práticas discursivas que compreendem as diferentes formas de se interpretar e/ou viver esse território.
Nesse sentido, enxergamos duas grandes práticas discursivas possíveis; a primeira, periférica, se refere ao tempo lento das comunidades tradicionais e povos indígenas, povos tradicionalmente ligados à natureza, sustentando relações interconectadas com esse ambiente, nele se produzindo e reproduzindo. A segunda, dominante, se liga ao agronegócio (instrumento do tempo rápido do capital)[2], através da tecnologia de ponta, da modernização do maquinário, das técnicas de produção, processos desenvolvidos no seio da modernidade (Pelá; Mendonça, 2010) - essa que, segundo Mignolo (2017), não vem à tona desacompanhada, carregando consigo a obscura colonialidade[3].
O Cerrado, tal como é na contemporaneidade, é formado através do discurso do tempo rápido, aliás, de suas práticas discursivas, as quais agem sobre a realidade, moldando o que se vê, o que se faz, como se faz. Os números gritam, há poucos que os ouçam: 30 anos atrás, restavam 70% da cobertura vegetal do território cerratense, em 2018 essa porcentagem desceu a 54% (Santos; Cherem, 2023). As causas são a expansão agropecuária, a mesma que produz o discurso ora dominante, afinal, o agro clama ser tech, ser pop, ser tudo. Nessa busca totalizante, reivindica todos os espaços "vazios", numa política neoliberal desenfreada que destrói, desrespeita, mata. Nos apropriando da analogia brilhante de Karl Polanyi (2000), a política neoliberal que assola o Cerrado é como um moinho satânico, moendo usos e costumes, modos de vida, paisagens, riquezas naturais e culturais.
Investigando as raízes da predominância do discurso do agronegócio como fator essencial na (re)ocupação[4] do Cerrado, revisitamos suas espacialidade no período do Brasil Colônia, momento histórico no qual ocorreu a estruturação de outro discurso. Com a redução drástica da quantidade de ouro retirado das minas goianas, esse território ficou marcado pelo estigma da decadência. Nesse sentido, o Cerrado, e mais especificamente o território goiano, teve sua imagem moldada pela "ignorância", tornando-se local de "atraso", onde mais tarde seriam implementados "ideais do futuro", formulando uma sociedade civilizada (Chaveiro, 2020). O subdesenvolvimento dessa região, portanto, "caiu como uma luva" aos interesses de expansão agrícola iniciados no século XX, os quais pretendiam integrar a região Centro Oeste à dinâmica capitalista brasileira, modernizando-a. O Planalto Central, portanto, se tornou cobaia para testes tecnológicos que visavam aumentar a produção agrícola, em um processo que ficou conhecido como Revolução Verde (Della Giustina; Franco, 2014), instaurando uma nova dinâmica territorial no Cerrado. Nesse novo cenário, se fazia necessário cada vez mais extensões de terra, e nem mesmo as culturas indígenas ou comunidades tradicionais impediriam o giro desse moinho satânico.
É evidente ao observador leigo a predominância do discurso do tempo rápido em detrimento das práticas discursivas que privilegiam povos tradicionais e comunidades indígenas. Mas por quê? Qual a causa desse processo? Possíveis respostas podem ser vislumbradas nos estudos das Ciências Sociais e História. É emblemática a frase da historiadora Sandra Pesavento, ao afirmar que "aquele que tem o poder simbólico de dizer e fazer crer sobre o mundo tem o controle da vida social e expressa supremacia conquistada em sua relação histórica de forças" (Pesavento, 2005, p. 22).
Ora, o processo de dominação da autoridade e controle do poder foi consolidado pelo capitalismo através de sua herança colonial, a qual se caracteriza pela suposta hierarquia de "raças". As etnias indígenas, negras, pardas, entre outras, foram subordinadas pelo capitalismo/colonialidade, a ideia de que indivíduos de cor branca são superiores a pessoas de outras cores ainda é, mesmo que subliminarmente[5], fator essencial no jogo de forças elucidado por Pesavento. Assim, o discurso do capital/tempo rápido, destruidor do Cerrado e de culturas, exerce domínio simbólico que viabiliza suas ações. As consequências desse processo são significativas, uma das mais recentes problemáticas envolvem a discussão sobre o Marco Temporal, numa tentativa de, novamente, deslegitimar movimentos sociais e pautas indígenas em proveito da grande elite, recolonizando o espaço (Mignolo, 2017).
No discurso dos povos “dominados” pelo capital podemos vislumbrar, apesar de tudo, ações e processos que, se não param definitivamente o giro desse moinho satânico, ao menos reduzem sua vitalidade. Nesse sentido, as cosmovisões indígenas e de outras comunidades tradicionais precisam vir à tona, é preciso deixar os subjugados falarem (Spivak, 2010). Esses povos, em uma relação homem/natureza diametralmente oposta ao tempo rápido do capital, enxergam no Cerrado não somente árvores tortas, córregos e rios, mas decodificam nessa paisagem elementos culturais que nela estão impressos, e que somente podem ser vistos com essa visão integrada (Pelá; Mendonça, 2010). Os olhos do capital são incapazes de enxergar nessa paisagem elementos como as pamonhadas, folias de reis, festas juninas, catiras, etc., como elementos valiosos da cultura cerratense. Desse modo, essa segunda prática discursiva, que privilegia os povos ditos subjugados, enxerga no Cerrado mais valores de uso que de troca. Portanto, trata-se não de um elo materialista com o território, mas de vínculos que o conservem, de modo a garantir a cultura e a tão necessária biodiversidade. O Cerrado, nesse sentido, está nos olhos de quem vê, ao privilegiar a visão do capital encobriremos o horizonte com as possibilidades lucrativas. Ao mirar o Cerrado com os olhos dos nossos ancestrais indígenas e povos tradicionais brasileiros, descortinaremos horizontes mais sustentáveis.
NOTAS
[1] (Chaveiro, 2020, p. 5) [2] Algumas das políticas territoriais implementadas com o discurso do tempo rápido podem ser destacadas como: Fundação Brasil Central com a Marcha para o Oeste de Vargas, o projeto Colônias Agrícolas de Goiás (CANG), construção de Goiânia e Brasília, "(...) criação da ACAR - Associação de Crédito e Assistência Rural, em 1948; do IPEA - Instituto de Pesquisas Agrícolas, em 1960; Sudeco - Superintendência do Desenvolvimento do Centro-Oeste, em 1967; Embrapa, em 1973; Padap - Programa de Assentamento Dirigido do Alto Paranaíba, em 1973" (Chaveiro, 2020, p. 9). [3] O conceito de colonialidade se refere aos resquícios do processo de dominação europeu em suas colônias exploratórias, nesse sentido, as práticas que ora ocorriam nesses espaços, como a dominação da autoridade, da economia, da subjetividade, entre outros, ainda ocorrem na sociedade atual. De modo que a colonialidade é como um fantasma – bem real – que assombra países periféricos ou semiperiféricos, reproduzindo velhas estruturas de poder e consolidando hierarquias sociais (Mignolo, 2017). [4] No processo de integração da região Centro Oeste à dinâmica capitalista, presumiu-se – convenientemente – que esse espaço estava vazio, logo, era inculto e atrasado, ideal para a expansão da “civilização”. O que essa visão desconsidera são os povos indígenas e comunidades tradicionais que habitavam esse espaço (Vicentini, 2016). [5] É preciso também aludir aos processos de racismo e preconceitos que ocorrem abertamente em nossa sociedade, caracterizando o Brasil como um local de enorme sociobiodiversidade, mas abrigo do racismo estrutural.
REFERÊNCIAS
CHAVEIRO, Eguimar Felício. Por uma leitura territorial do Cerrado: o elo perverso entre produção de riqueza e desigualdade social. Élisée, Rev. Geo. UEG, v. 9, n. 2, p. 1-21, jul./dez. 2020.
DELLA GIUSTINA, Carlos Christian; FRANCO, José Luiz de Andrade. O Uso Insustentável dos Recursos Naturais no Estado de Goiás: Efeitos da agricultura na conservação do bioma Cerrado. FRONTEIRAS: Journal of Social, Technological and Environmental Science, Anápolis-Goiás, v.3, n.1, jan.-jul. 2014, p.55-65.
MIGNOLO, W. D. COLONIALIDADE: O LADO MAIS ESCURO DA MODERNIDADE. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 32, n. 94, 2017. Disponível em: < SciELO - Brasil - COLONIALIDADE: O LADO MAIS ESCURO DA MODERNIDADE COLONIALIDADE: O LADO MAIS ESCURO DA MODERNIDADE>. Acesso em: 10 set. 2023.
PELÁ, Márcia; MENDONÇA, Marcelo Rodrigues. Cerrado goiano: encruzilhada de tempos e territórios em disputa. In: PELÁ, Márcia; CASTILHO, Denis (Orgs.). Cerrado: perspectivas e olhares. Goiânia: Editora Vieira, 2010. p. 51-69.
PESAVENTO, Sandra. Mudanças epistemológicas: a entrada em cena de um novo olhar. _In:_ ______. História & História cultural. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. p. 21-36.
SANTOS, S. A. DOS; CHEREM, L. F. S. Estrutura espacial e temporal das Unidades de Conservação no Cerrado: heterogeneidade combinada em prol da conservação. Sociedade & Natureza, v. 35, p. e65504, 13 jan. 2023. Disponível em: <SciELO - Brasil - Spatial and temporal distribution of Unidades de Conservação in the Cerrado: heterogeneity and structure combined for conservation Spatial and temporal distribution of Unidades de Conservação in the Cerrado: heterogeneity and structure combined for conservation >. Acesso em: 19 set. 2023.
VICENTINI, Albertina. Tal sertão qual Cerrado?. Goiânia: Gráfica UFG, 2016.

Graduado em História e mestrando pelo Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Territórios e Expressões Culturais no Cerrado (PPG-TECCER) da Universidade Estadual de Goiás (Anápolis, Goiás). Integra o Núcleo de Pesquisa dos Saberes Tradicionais e Ambientais do Cerrado, NuSACER (TECCER-UEG). É editor executivo da Revista Nós: Cultura, Estética e Linguagens, ISSN 2448-1793. Bolsista CAPES.
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/0108999550911328
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