O ASSOMBRO AOS FARRICOCOS: REFLEXÕES ANTROPOLÓGICAS E LINGUÍSTICAS SOBRE O FENÔMENO.
- teccernusacer
- 28 de ago. de 2024
- 7 min de leitura

A edição era do dia 28 de março de 2024 do portal da Folha de São Paulo. O título estava claro e objetivo, assim como o lead, que era muito bem explicado. "Procissão do fogaréu reúne milhares de fiéis e turistas em Goiás", dizia a manchete, que estava acompanhada do subtítulo: "Encenação religiosa é uma das mais tradicionais do país e acontece na quinta-feira da Semana Santa".
O lead explicava o que é uma tradição, uma encenação, uma manifestação cultural e sobre a fé católica. Ao longo de todo o texto, havia mais informações que complementavam a ideia inicialmente posta. Nos três últimos parágrafos, havia outra explicação de que a procissão tem origem medieval e a encenação começou em 1745, trazida pelo padre espanhol João Perestrello de Vasconcelos Espíndola, e de que em 2018, a celebração foi declarada patrimônio cultural e imaterial do Estado de Goiás. A matéria era ilustrada por duas fotos: a primeira da multidão com as tochas, e a segunda dos farricocos.
Nada demais para uma matéria jornalística, que tinha o objetivo de noticiar a manifestação religiosa alusiva à Semana Santa. O que nos chamou a atenção foi quando a notícia foi postada no Instagram da Folha, onde houve mais de 650 comentários. Alguns faziam alusão à Ku Klux Klan, movimento reacionário e extremista com foco na supremacia branca, enquanto outros tentavam explicar o real significado das máscaras e do fogo, enfim da tradição.
Os comentários nos remeteram às reflexões de Bakhtin (2002) e seus estudos de linguagem, que destacam a palavra como elemento central. De uma forma bem direta, para este autor, a palavra representa o centro da comunicação na vida cotidiana e revela as consciências, ideias e ideologias. A palavra se torna crucial devido à sua significação. A palavra adquire significado porque está sempre direcionada a um interlocutor e expressa uma situação social, um contexto.
Koch (2006) também contribui com a nossa análise ao destacar as diferentes concepções de texto relacionadas ao conceito de língua. O texto é visto como o produto lógico do pensamento do autor. E como aconteceu no Instagram, quando as postagens se referiam a Procissão do Fogaréu como um movimento extremista de supremacia branca, os interlocutores deram início a uma concepção interacional e diálogica, como define o autor, em que os interlocutores foram sujeitos ativos que agiram dialogicamente.
Saindo do campo da linguagem e adentrando ao da Antropologia, compreendemos, nas referidas postagens, a ausência do conhecimento do outro, como nos diz Gomes (2008), ao se referir à importância de conhecer a humanidade em sua totalidade e ao buscar compreender a existência de uma diversidade cultural, social e biológica ao longo do tempo e em diferentes contextos.
O autor cita, por exemplo, os rituais religiosos que constam no calendário católico, dentre eles, a Semana Santa. A Antropologia se debruça em estudos que buscam entender os motivos da incompreensão de rituais, mesmo sendo as tradições de um mesmo país. Cada região brasileira possui seus significados simbólicos e contextos culturais. Neste sentido, a sociedade passa a ter valores e sistemas de crenças, o que é intensificado pela globalização e pelo avanço dos veículos de comunicação, que oportunizam o acesso a uma gama de experiências culturais.
Mas o que nos inquieta é pensar, enquanto pesquisadores, que as postagens podem estar ligadas à ausência de conhecimento histórico, social e religioso; ou serem carregadas de estereótipos, preconceitos e interpretações equivocadas. Os estudos atuais do campo da Antropologia nos desafiam a novas investigações, que, no caso específico da matéria da Folha de São Paulo e dos comentários no Instagram, relacionam vários campos do saber que podem contribuir para a compreensão dos fenômenos, os quais inclusive podem avançar e chegar ao campo da Comunicação, buscando compreender o que tais comentários podem gerar no contexto social, que já está amplamente marcado pela desinformação e pelas fake news.
Partindo, por fim, para uma análise folclorística da questão, poderíamos entender os comentários como um movimento muito interessante por parte dos leitores da matéria. De fato, perceber a facilidade de identificação da roupa cônica com a terrível Ku Klux Klan por parte dos leitores ilustra certa vitória da cultura de massa sobre a cultura popular, desafiando a discussão de Krawczyk-Wasilewska (2016) sobre o folclore no ambiente digital. A autora propõe que o folclore se reconfigura para continuar existindo e mantendo seu papel de definidor da identidade de um povo na Era Digital. A associação entre a Procissão do Fogaréu e os movimentos racistas dos EUA ilustra, na verdade, uma relativa vitória da cultura de massa, que tende a hegemonizar a cultura humana em símbolos unos e supremos. Isso se deve à extrema reprodução da indumentária da KKK pelo cinema norte-americano em sua exploração do hediondo passado racista do sul dos Estados Unidos.
No entanto, enquanto essa sociedade de homens brancos se organizava e estruturava em solo estadunidense, o racismo brasileiro – e nesse caso o goiano – se configurava de modo diverso àquele já notório dos norte-americanos. Nesse mesmo contexto, os farricocos dificilmente assumiram essa função simbólica de genocídio e perseguição racial. Antes, criados num momento que antecede a discussão racial – uma vez que não havia o que discutir sobre a supremacia de poder dos brancos no século XVIII – os farricocos cumprem a função básica de expiação dos pecados durante a Semana Santa, preservando a identidade do pecador: como um carrasco que oculta o rosto antes de sacrificar Cristo, este que é o deus dos católicos.
O que é possível depreender dessa situação? Que a extensão da re-produção (no sentido de produto) desse símbolo na cultura de enfrentamento social norte-americana em muito lembra a crítica por trás das obras de Andy Warhol, notório artista da pop art, visto que a constante retomada da indumentária dos extremistas se torna um símbolo do próprio racismo, logo, algo a ser combatido. Isso não é apenas necessário, como desejável. No entanto, como modificar um símbolo de fé com significado completamente diverso e que muito antecede essa mancha na história da humanidade? Só podemos supor que foi este o mesmo dilema ético que diversas e milenares religiões enfrentaram sobre o uso da suástica – que em muito antecedia ao nazismo. Saímos, por fim, da pura análise científica dos fatos e partimos então para uma discussão ético-moral – se é que ela não esteve presente durante toda a construção desta argumentação.
Peter Burke (2010), em sua obra “Cultura Popular na Idade Moderna” desbrava o que intitula “A vitória da Quaresma” na Itália. De fato, a mesma celebração dentro do calendário goiano enfrenta um obstáculo diverso que não garante a constante vitória da tradição, mas exigirá, ao longo dos próximos anos, muito debate público e respeito tanto à história do extermínio negro, quanto às tradições e modo de vida do povo vila-boense e goiano de modo geral. Se, por um lado, não podemos colocar sobre os ombros do povo goiano o peso da reparação histórica que os Estados Unidos devem aos descendentes daqueles que foram escravizados, tampouco pode a sociedade goiana continuar ignorando os constantes ataques que tal associação vem gerando contra a sociedade goiana, que já possui tremendos esqueletos no armário no que tange à escravidão e racismo, ainda que estes não possuam relação com a Procissão do Fogaréu e a celebração religiosa que ela evoca.
Tal situação expõe outra dinâmica problemática: a facilidade com que a associação simbólica de uma imagem dispensa mesmo a leitura do texto ou material escrito que a acompanhe. Tendo em vista que a cultura de massa tende a unificar o significado de um símbolo em uma coisa única – o que é visível até em mitos, antes múltiplos e hoje cada vez mais unificados numa narrativa única – a simples alusão a isto é suficiente e dispensa qualquer tentativa de explicação. Isso com certeza exigirá uma análise mais aprofundada e estratégias de enfrentamento. Afinal, o segredo para enfrentarmos o século que se segue está sim na reparação histórica, mas também no conhecimento, no respeito e sempre na honestidade intelectual.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 10. ed. São Paulo: HUCITEC, 2002.
BURKE, Peter. Cultura Popular na Idade Moderna. São Paulo: Companhia de Bolso, 2010.
GOMES, Márcio Pereira. Antropologia: ciência do homem, filosofia da cultura. São Paulo: Contexto, 2008.
KOCH, Ingedore Villaça Grunfeld. Desvendando os segredos do texto. 5. ed. São Paulo: Contexto, 2006.
KRAWCZYK-WASILEWSKA, Violetta. Folklore in the Digital Age: Collected Essays. Cracóvia: Łódź University Press & Jagiellonian University Press, 2016.
Letícia Jury é jornalista (UFG) e Cientista Social, com Mestrado em Comunicação
(UFG) e Doutoranda em Ciências Ambientais (UniEvangélica). É especialista em
Assessoria de Comunicação, Novas Tecnologias Aplicadas à Educação e em Jornalismo
Investigativo.
Maximiliano Corrêa é mestrando em Ciências Sociais e Humanidades pelo Programa de Pós-Graduação em Territórios e Expressões Culturais do Cerrado, da Universidade Estadual de Goiás e coordenador do Núcleo de Pesquisa dos Saberes Tradicionais e Ambientais do Cerrado, NuSACER (TECCER-UEG). Suas pesquisas se debruçam sobre folclore, história das mentalidades e cultura popular, em especial o e-folclore, próprio do ambiente digital.
Josana de Castro Peixoto Possui graduação em Ciências Biológicas, modalidade bacharelado pela Universidade Federal de Goiás (2001) e licenciatura pela Universidade Estadual de Goiás (2000). Mestrado (2001), doutorado em Biologia (2010) e estágio pós-doutoral pela Universidade Federal de Goiás (2015) em parceria com o Programa en Biología y Ecología Aplicada na Universidade de La Serena, La Serena, Chile. Docente do quadro efetivo da Universidade Estadual de Goiás, campus sede central, Anápolis, GO e no Programa de Pós-graduação em Territórios e Expressões Culturais do Cerrado (TECCER). Ainda atua na Universidade Evangélica de Goiás nos cursos de graduação em Ciências Biológicas (Exerceu a função de diretora de curso no período de 2013 -2020) e Medicina. Atua no Programa de Pós-Graduação (stricto sensu) em Sociedade, Tecnologia e Meio Ambiente (PPG STMA) e no Programa de Pós-graduação em ciências Farmacêuticas, Farmacologia e Terapêutica (PPG FFT). Tem experiência na área de Plantas nativas do Cerrado e conservação e bioprospecção de produtos naturais onde participa de estudos morfoanatômicos, fitoquímicos, farmacológicos e toxicológicos de plantas e seus produtos naturais e, também atua na linha de Ciências Ambientais onde participa de pesquisas voltadas à Conservação e proteção à Natureza. Faz parte do grupo de pesquisa Biodiversidade e Meio Ambiente; coordena o projeto de pesquisa Dinâmica da sucessão vegetacional em área florestada de Cerrado goiano vinculado ao Projeto PROCAD/CAPES "Novas Fronteiras no Oeste: relação entre sociedade e natureza na microrregião de Ceres em Goiás (1940-2013)" Processo CAPES 2980/2014. Participa do Núcleo de Saberes Ambientais e Tradicionais do Cerrado da Universidade Estadual de Goiás.
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