“MÁQUINAS DE MORAR”: Dinâmicas contemporâneas da arquitetura Xavante A’wue
- teccernusacer
- 15 de ago. de 2023
- 6 min de leitura
Atualizado: 5 de set. de 2023
por Samuel Santos Leão e Silva
A casa é uma máquina de morar
Le Corbusier

Sempre me impressionam as várias construções em art déco, espalhadas por Goiânia, em Goiás. Em minha cidade natal, Anápolis, à 60km da capital, o cenário é mais escasso em variações arquitetônicas, mas temos também algumas representantes do movimento pelo Centro da cidade, como o Coreto da Praça James Fanstone e algumas casas preservadas, além de construções assinadas por Oscar Niemeyer e outras residências modernistas dispostas também na região central.

Essa percepção sempre me acompanhou, mesmo não integrando minhas principais áreas de pesquisa, creio que seja quase inevitável perceber diferenças entre construções, afinal, não são apenas detalhes, são prédios e casas inteiriços, nos quais se cria uma face sólida e interativa da cidade e de sua população.
Durante meus estudos na graduação, acerca do povo A’wue Xavante, voltei a pensar nesse cenário local quando li um texto chamado: “A organização espacial dos Xavante - A’wue, um olhar qualitativo sobre o espaço” produzido por um mestrando em Matemática, chamado Adailton Alves da Silva, da UNESP.
Em minhas visitas às comunidades Xavantes, percebi três graus de moradia, que representam uma transformação estrutural na sociedade Xavante. As casas Xavantes originais foram descritas pelo antropólogo Arthur Shaker (2002) assim:
O chão representa a terra e o teto a cúpula celeste, sustentada por um eixo que simboliza o eixo-do-mundo, que sobe até o topo do teto. Do perímetro do círculo no chão sobem os esteios secundários que são amarrados no topo. Sobre esses esteios são amarradas as varas de bambu circularmente até o topo e sobre essa estrutura é feita a cobertura de palha. Esta casa é um símbolo micro-cósmico do macro-cosmo. Sua arquitetura torna-se fresca e arejada nas épocas quentes, e aquecida nas épocas frias. Nos dias atuais, essa forma tradicional foi toda substituída pela casa de base retangular e telhado de águas.” (SHAKER, 2002, p. 188)
Compartilho dessa percepção, adquirida em minhas experiências in loco, contudo discordo da afirmação de totalidade, tais formatos arquitetônicos não foram totalmente substituídos, apesar das novas gerações realmente priorizarem o modelo retangular. Ainda se encontram diversos adultos, idosos e até jovens que insistem ou preferem o método tradicional, em especial na região da Terra Indígena Pimentel Barbosa, um dos 9[1] territórios Xavante no Mato Grosso dos quais frequento.
Em comparação com o cenário local da minha cidade natal, a arquitetura Xavante seria até mais resistente do que os movimentos que já passaram por aqui. Seja o Art Déco ou o Modernismo, este segundo um pouco mais duradouro e, vez ou outra, visto em construções recentes, ambos já se distanciam mais da realidade social da cidade do que as casas em formato de cupinzeiro, cônicas e todas trabalhadas em madeira, folhas de palmeiras e palha se distanciam dos Xavante.
Percebe-se que rupturas e absorções de costumes são processos longos e miscíveis, de modo que não ocorrem de maneira absoluta ou não dependem apenas de uma ou duas gerações para se concretizarem. Apesar dos focos de conservação, há também regiões e aldeias que fizeram o movimento contrário.
Dois exemplos seriam as Terras Indígenas (TIs) São Marcos e Sangradouro, fortemente infiltradas pela catequização salesiana católica. Apesar de pontos positivos, como a sistematização da língua Xavante, através da criação de um alfabeto escrito e do registro da cultura em sua própria língua, existem também alterações radicais na estrutura tradicional.

Portanto, percebi 3 graus de casa Xavante, o primeiro foi o tradicional, descrito por Shaker (2002), o segundo seria uma variação na forma, tomando o formato de uma casa retangular, contudo conservando os materiais usados na construção e, finalmente, as casas de alvenaria, em formato pentagonal ou talvez hexagonal, feitas de tijolo e cimento, com chão de cimento queimado e teto coberto por telhas.
Em minha última visita à TI Sangradouro, tive a impressão que tais alterações levaram os Xavante a mudar seu modo de vida mais radicalmente que outras comunidades. Foi a aldeia que mais transmitiu a sensação de uma periferia urbana, única em que ouvi ameaças aos visitantes, em exigências de nossos recursos, tanto alimentos quanto roupas.
Portanto, percebe-se como a arquitetura e as organizações sociais refletem na moral pessoal, e na interpretação do mundo de cada indivíduo. Shaker (2002) finaliza a descrição do antigo modelo de casa Xavante transmitindo seus significados e significantes, em uma análise semiótica:
O ganho em durabilidade custou a perda do simbolismo cósmico da forma tradicional cônica. Lembremos que o cone, se visto de baixo para cima, é um dos símbolos do processo de concentração que se unifica no topo. Visto de cima para baixo, simboliza o processo de diferenciação e expansão cósmica, a partir do topo-centro no alto. A porta e as frestas laterais permitiam o manejo da entrada de luz durante o dia e da preservação do escuro durante a noite, que juntamente ao calor das fogueiras acesas dentro da casa, são imagens visuais do jogo luz-escuridão que fazem parte da vida prática e simbólica de um povo tradicional. (SHAKER, 2002, p. 188)
Certamente existem fatores que refletem as mudanças estruturais, no modo de vida e sua infraestrutura, para o inconsciente coletivo e para o comportamento geral. Contudo, me preocupo em não tratar os pontos positivos das tradições, que foram e vêm sendo abandonadas, apenas com um preciosismo acumulador, como se a manutenção daquele modelo fosse mais importante que a satisfação de seus praticantes.
Portanto, apesar de me desdobrar para compreender práticas e conceitos tradicionais dos povos indígenas, em especial dos Xavante, também procuro aceitar as alterações como momentos inadiáveis, que ocorrem em todas as civilizações e as mudam, não necessariamente as destruindo ou descaracterizando. Assim como Anápolis já não ostenta mais construções inéditas em Art Déco, as aldeias mudaram. Saber aceitar e trabalhar com as mudanças que o ambiente nos força inclusive é uma qualidade, percebida pela pesquisadora Aracy Lopes ao observar os Xavante:
Amnésia genealógica, parcos recursos para a contagem do tempo com certa precisão e profundidade, ausência de culto aos mortos, nem mesmo enterro secundário... tudo isso parece indicar os Xavante como um povo voltado "para a frente", se pudermos dizer assim. Pouco interesse pelo passado? Poderia sua atitude para com seus mitos reforçar essa impressão? Não se reportam a estes, corriqueiramente, no curso de suas atividades e experiências cotidianas, como fazem outros povos. (LOPES, Aracy. 1998. p 206)
Essa característica também foi percebida pelo diretor e documentarista Belisário França, no filme “A estratégia Xavante” (2006), no qual se conta a história de um cacique tradicional Xavante, da geração que iniciava o contato harmônico com os “Waradzu”, como chamam os não indígenas. Em algumas aldeias, ele selecionou um filho do cacique para ser mandado para as cidades, para viver com famílias da sociedade civil brasileira, desenvolverem seus estudos e retornarem às aldeias com o conhecimento necessário para gerir sua população nesse contexto de interação com a sociedade em geral.
Apesar de nem todos concluírem tal tarefa, pois alguns se casaram ou decidiram não retornar, assim como velhos padrões estéticos não retornam, a maioria seguiu as orientações e passaram a constituir uma espécie de conselho para assuntos não indígenas, o que fez e faz total diferença na manutenção da liberdade de vida dos Xavante, mantendo suas terras e a maior parte de seus costumes, mas também possibilitando negociações e atualizações junto à sociedade que os circunda.
Para Baldus e, vinte e seis anos depois, para Ravagnani, os Xavante são pacíficos, empenhados, apenas, na defesa de seus territórios e da sua necessidade de sobrevivência. Nesse longo percurso que foram levados a fazer, obrigados a fugas constantes, ficou o aprendizado maior da sua relação com os brancos. Os brancos têm a cabeça no joelho e é difícil acertá-los. É preciso estudá-los com cuidado para descobrir como lidar com eles. Os Xavante que sobreviveram e que hoje somam mais de 5.000 pessoas são os donos dessas verdades. Verdades nascidas de uma dura experiência de aceitação inicial do contacto, seguida de uma rejeição, com conhecimento de causa. (LOPES, 2018, p. 212)
Enfim, pode até acontecer o eterno retorno, a exemplo da ressurreição da moda em vários âmbitos culturais humanos, mas o tempo segue em frente. Mudanças ocorrem e, por mais que se resgate a tradição, a realidade não será a mesma de anos, décadas ou séculos atrás. Não estou, de maneira alguma, defendendo a desconstrução da identidade e de práticas originárias, mas pretendo incutir a percepção de que povos indígenas também se transformam, tal qual as sociedades não indígenas, por escolha própria ou não.
REFERÊNCIAS
ALVES, Adailton, 2006. A organização espacial A'uwe - Xavante. Um olhar qualitativo sobre o espaço. Rio Claro, SP.
LOPES, Aracy, 1983. A Expressão Mítica da Vivência Histórica: Tempo e Espaço na Construção da Identidade Xavante. UNB, 2018.
MAYBURY-LEWIS, David, 1974. A Sociedade Xavante. São Paulo: Francisco Alves, 1984.
SHAKER, Arthur, 1948. Romhõsi`wai hawi rowa`õno re ihoimana mono: a criação do mundo segundo os velhos narradores Xavante. Campinas, SP, 2002.

Samuel Leão é jornalista e mestrando em Ciências Sociais e Humanidades pelo Programa de Pós-Graduação em Territórios e Expressões Culturais do Cerrado, da Universidade Estadual de Goiás e integra o Núcleo de Pesquisa dos Saberes Tradicionais e Ambientais do Cerrado, NuSACER (TECCER-UEG). Suas pesquisas se debruçam sobre os povos originários, em especial os Xavante, dinâmicas culturais e comunicacionais, identidade na contemporaneidade e cultura popular.
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3525262592093081
Texto maravilhosamente bem construído! Precisamos disseminar a ideia de que povos originários também têm o direito de se transformar. A ideia do indígena congelado no tempo só ajuda a reproduzir falas preconceituosas.