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GOIÁS PELO OLHAR DOS ARTISTAS VIAJANTES EUROPEUS


Guilherme Campos Pereira


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Artistas europeus retratam locais inacessíveis a grande parte da população européia como parte da divulgação dos descobrimentos e peregrinações para outros continentes há muito tempo. No século XIX, passos eram dados para a intensa globalização como parte da integração dos cantos do globo. Neste século os europeus intensificaram suas viagens, dadas as oportunidades facilitadas para acessar outros territórios, tanto pelo Imperialismo, que angariava às nações europeias livre tráfego para suas colônias, assim como especificamente no Brasil, pela abertura dos portos por Dom João VI (Rezende, Magalhães, 2023), depois que a família real portuguesa foi morar na colônia. Isso permitiu uma facilidade maior de deslocamento por áreas novas, o que levou navegadores e cientistas a coletarem espécimes naturais no mundo, levando inclusive à observação feita por Charles Darwin, ao juntar todo o corpo de evidências e postular sobre, de que todos os organismos vivos tinham graus de parentesco variados e descendiam de ancestrais comuns. Dentre os europeus vindos para o Brasil, alguns destes eram artistas. Artistas nesta época anterior à fotografia, serviam como registradores de momentos para a História (Thornton, 1996), pelo simples fato de que além das testemunhas oculares, uma arte foi feita no local atestando a autenticidade do momento.

As razões pelas quais os viajantes artistas iam a tais locais se baseavam em algumas circunstâncias, sendo uma destas o fato de que como parte do acúmulo de saber das nações europeias nos séculos posteriores ao renascimento, desenvolveu-se uma corrente acadêmica, o enciclopedismo, que se tratava de um movimento erudito que tentava compilar os saberes em obras com diversas seções organizadas por temas, que culminaria tanto no Iluminismo (Nobre, 2007), como no Positivismo, em que os saberes científicos valiam como única fonte de saber. Mediante isto, um dos pilares para o desbravamento de áreas naturais estava consolidado. Estes artistas viajavam para registrar, usando da ilustração científica, espécimes e ecossistemas naturais. Este dado motivo, porém, só servia aos artistas que tinham propósitos baseados no saber científico. Outro fator que levou europeus artistas a trafegarem por outros locais do globo, foi o esgotamento temático da arte europeia. De acordo com Carol Strickland, a Europa vivia no século XIX mais um déjà vu, depois de vários séculos voltando à estética greco- romana e universo judaico-cristão bíblico para inspiração e movimentos retrô (como haviam sido o renascentismo, o barroco, o neoclássico, o bizantino, o gótico e o românico). Esta busca por temas diferentes levou alguns artistas para o Oriente (Thornton, 1996), e alguns para o Novo Mundo. O romantismo, movimento artístico do século referido, rechaçava a ideia do classicismo e mostrava interesse por desbravar locais e achar algo inesperado. A Europa parecia ansiar por imagens novas. No oitocentos, surgiu junto do movimento romântico a ideia de "sublime" e de "pitoresco", que se encaixavam nas aspirações dos artistas por retratar algo novo, fresco. Na obra de William Gilpin surgiu então a ideia de perseguir paisagens novas, principalmente inexploradas, como horizontes distantes que encerravam em si uma promessa de algo novo, de agradável suspense, descortinando belezas variadas nos morros e vales (Mattos, 2007). Munidos desta missão, muitos artistas europeus trilhavam caminhos para diferentes destinos.

Algumas missões artísticas vieram ao Brasil em diferentes momentos, mas quais delas chegaram a pisar de fato no Estado de Goiás? A primeira das que vieram ao Brasil, a missão artística Holandesa, vinculada a Maurício de Nassau, na primeira metade do Século XVII, retratou o Pernambuco, a Paraíba, Alagoas, Maranhão e Ceará. Contudo, não passou por Goiás.

Já no século XIX, Dom João VI decreta a abertura dos portos do Brasil às “nações amigas” em 1808, o que possibilita a segunda missão artística a vir ao Brasil. Dom João VI, pensando em revolucionar as artes da Colônia brasileira, assim como retratar as belezas do território lusitano no além-mar, o monarca chamou o que se convenciona chamar de "Missão Francesa", que foram artistas franco-europeus para o Brasil. Estes vieram para criar a academia brasileira de belas artes, organizar uma nova grade curricular de artes e ofícios, lecionar, trazer as influências da arte europeia e criar arte à moda francesa do século XVIII. O Brasil se via numa fase em que o estilo barroco ainda era a norma, enquanto todo o resto do ocidente já havia transicionado para o neoclássico. Os artistas da missão francesa trouxeram o neoclássico em seu arcabouço, e com isso renovaram as matrizes de inspiração da Colônia.

Goiás, à época da Missão Artística Francesa ainda era vista como uma província esquecida, em que havia tido atenção por causa do ciclo do ouro e após tal metal ficar mais escasso, entrou em declínio, com o desaparecimento de cidades menores e uma economia baseada em gado e agricultura de subsistência. Também não veio nenhum dos artistas da referida missão ao Estado de Goiás.

Após isso, uma terceira missão aportou no Brasil, a expedição científica austríaca, com Johann Baptist Emanuel Pohl e outros, e este de fato veio a Goiás, porém, não era artista. Não no mesmo momento, mas diretamente da mesma comitiva veio Johann Natterer, que seguiu caminhos diferentes, porém veio a Goiás também (Riedl-Dorn, 1999).

Ao todo vieram para as terras goianas uma quantidade total de três europeus, artistas de carreira ou não, que fizeram artes retratando a paisagem ou coletas zoológicas/botânicas ilustradas. Alguns vieram como expedicionários, outros como viajantes interessados em entender a cultura e natureza, outros para a coleta de informações. Convém a classificação dos artistas em três categorias:


A. Cronista Visual: Um viajante que relata sua experiência, muitas vezes com um diário a tiracolo, e ao querer fornecer mais detalhes sobre o que está almejando descrever, usa de imagens para complementar suas anotações.


B. Pesquisador: Um profissional que vai a campo para coletar, tanto informações técnicas quanto espécimes botânicos e zoológicos, e usa da arte para fazer uma ilustração científica ou técnica do objeto abordado.


C. Artista Plástico: Um artista que vai a locais exóticos do que encontrava na Europa para poder abordar novos temas, descobrir cores, formas, maneiras, tradições impossíveis de serem testemunhadas a olho nu em seu continente natal.


Após todo o levantamento de informações, chega-se a uma lista dos viajantes que fizeram ilustrações em solo goiano no referido século:


  1. François-Louis LaPorte, ou Conde de Castelnau: Um inglês, que à serviço da França, viaja pelo Brasil, Bolívia e Peru para fazer observações astronômicas, meteorológicas, cartográficas e descrições da fauna, flora e mineralogia do continente sul-americano. Para isso se juntou a um médico botânico, o doutor Hugh Weddell, um naturalista, Emile Deville e um engenheiro de minas, Victor Eugène Hulot d'Osery. Parte da expedição foi frustrada pois Victor se perdeu dos companheiros, e, estando em posse das coletas, anotações e registros da viagem, foi roubado e assassinado por remadores da embarcação no rio Maranhão (Mello, 2015). A ele são creditas diversas descobertas de peixes, aves, répteis, anfíbios, insetos e plantas. Catalogou centenas de espécies em vida. Fez diversas observações acerca de etnias indígenas da qual teve contato.

figura 1: Acampamento no Rio Araguaia, Castelnau.
figura 1: Acampamento no Rio Araguaia, Castelnau.

  1. William John Burchell: artista e botânico inglês que veio ao Brasil no primeiro reinado, e esteve no país de 1825 a 1829. Apesar de cientista, Burchell fazia suas anotações e coletas de plantas, porém ficou mais conhecido pelos seus desenhos das cidades pelas quais passou. Documentava de forma quase fotográfica a arquitetura, espaços urbanos e paisagens das cidades brasileiras. Até hoje suas representações são usadas como atestado histórico dos anos em que desenvolveu suas aquarelas. Acondicionou de forma organizada suas coletas em um comboio, que levou de volta à Inglaterra para fazer a catalogação do material. Passou pelas cidades de Traíras (Tupiraçaba), Meia-Ponte (Pirenópolis), Villa-Boa (Goiás) e Jaraguá (Ferrez, 1981).


    Figura 2: Cidade de Meia Ponte (Atual Pirenópolis), William John Burchell.
    Figura 2: Cidade de Meia Ponte (Atual Pirenópolis), William John Burchell.
  2. Johann Natterer: Viajante que veio junto da Missão Científica Austríaca ao Brasil. A comitiva veio por estreitamento de ligações entre Áustria e Brasil devido à intenção de juntar Maria Leopoldina e Dom Pedro I, à época conhecido apenas como Pedro de Alcântara. Além de Johann Natterer, vieram na mesma expedição o artista Thomas Ender, o botânico e zoólogo Carl Friedrich Philipp von Martius, o zoólogo e botânico Johann Baptist von Spix, o médico e botânico Johann Baptist Emanuel Pohl, o jardineiro botânico Heinrich Wilhelm Schott e o médico e naturalista Carl Franz Anton Ritter von Schreibers. Destes, apenas Johann Natterer e Emanuel Pohl passaram por Goiás, mas apenas Johann Natterer era artista. Natterer foi o responsável pela maior coleção etnográfica, zoológica e botânica coletada do Brasil no século XIX, e hoje está espalhada em dois museus austríacos. Mais de 50 mil peças foram levadas à Europa a partir de suas coletas. Natterer passou 18 anos no Brasil, e após voltar, passou o resto de sua vida catalogando todos os itens levados (Riedl-Dorn, 1999). Natterer fazia ilustrações científicas para registrar suas visões da natureza, detalhar espécimes botânicos, documentar seus achados zoológicos. Suas artes eram feitas principalmente de aquarela. Ilustrou também inúmeros povos indígenas que conheceu em sua peregrinação de longa data.


Figura 3: Araçaris. Johann Natterer.
Figura 3: Araçaris. Johann Natterer.

Apesar de um número muito reduzido de artistas europeus em Goiás no século XIX, estes trouxeram uma visão nova, um registro que até hoje serve para a documentação dos locais que passaram, mas também a coleta de informações sobre a natureza que ajudaram no avanço da ciência como disciplina universal. Até hoje são usados os desenhos de Burchell para o atestado histórico das cidades pelas quais passou. Os detalhes arquitetônicos revelam possíveis reformas posteriores nas edificações que demonstrou em seus registros artísticos, através da comparação com suas características após sua visita em 1826-1827. O conde de Castelnau mostra contatos com etnias indígenas que mudaram ou se extinguiram desde sua visita no século retrasado. A coleta de itens por Natterer levou à construção de um museu inteiro dedicado ao Brasil na Áustria, em que mais de 50 mil itens foram enviados, classificados e expostos. No final pode-se perceber que quem ganha é a ciência, essa comunidade internacional que usa das informações para entender o mundo que se apresenta diante da humanidade.


REFERÊNCIAS


FERREZ, Gilberto (Org.). O Brasil do Primeiro Reinado visto pelo botânico William John Burchell: 1825-1829. Rio de Janeiro: Fundação João Moreira Salles; Fundação Nacional Pró-Memória, 1981.


MATTOS, Claudia Valladão de. Artistas viajantes nas fronteiras da História da Arte. Encontro de História da Arte, Campinas, SP, n. 3, p. 409–417, 2007.


MELLO, Maria Elizabeth Chaves de (Org.). Um francês nos trópicos. Francis de Castelnau: o olhar de um viajante no século XIX. 1. ed. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2015.


NOBRE, Sergio. Uma introdução à história das enciclopédias – a enciclopédia de matemática de Christian Wolff de 1716. Revista da SBHC, v. 5, n. 1, p. 34-46, Rio de Janeiro, jan./jul. 2007


REZENDE, Fernanda Soares Rezende; MAGALHÃES, Sônia Maria de. Condições sanitárias da capitania de Goiás no diário de viagem de Johann Baptist Emanuel Pohl (1818-1820). In: Lenora de Castro Barbo e João Guilherme Curado. (Org.). Goiás + 300. Cronistas e viajantes. 1ed.GOIÂNIA: Goiás + 300, 2023, v. 1, p. 173-212.


RIEDL-DORN, Christa. Johann Natterer e a Missão Austríaca para o Brasil. Petrópolis, RJ: Index, 1999.


THORNTON, Lynne. Les Orientalistes, peintres voyageurs: 1828-1908. 1. ed. Paris, ACR, 1983.


Fontes das imagens








Guilherme Campos Pereira
Guilherme Campos Pereira

Guilherme Campos é mestrando na Linha 3 (PATRIMÔNIO E EXPRESSÕES CULTURAIS NO CERRADO) do programa de Pós-Graduação em Territórios e Expressões Culturais do Cerrado, da Universidade Estadual de Goiás. Formado em Arquitetura, suas explorações são acerca de quadrinhos e formas literárias com ilustração feitas no Estado de Goiás, feitas no formato digital ou físico.

 
 
 

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