CERRADO DE MUITAS MEMÓRIAS
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Sirlene Alves da Silva

Viver no Cerrado é uma dádiva, e poder desfrutar de tantos primores que ele oferece, é um fascínio! Quem nasce no Cerrado e permanece nele, perpassando os anos de vida, assenhoreia de muitas benesses, lembranças e histórias para contar. Assim viveu o Senhor Teodorico Pereira, ou simplesmente Seu Ico, para os mais íntimos e os nascidos em Pirenópolis, Goiás, à sua época.
Teodorico Pereira (1926-2006), foi um pirenopolino apreciador da natureza e da cultura da cidade. Possuía uma sabedoria empírica e encantava com suas histórias, das quais nem todas eram absolutamente verdadeiras, mas, com a sua capacidade de persuasão, suas narrativas tornavam-se verossímeis para aqueles que dispensavam a ele a atenção (SILVA, 2020, p. 119). Quem conheceu Seu Ico, tem sempre um causo para contar.
Como funcionário público, Teodorico Pereira, foi porteiro de uma Unidade Educacional, a Escola Estadual Professor Ermano da Conceição, que em seu período de atuação, era situada do bairro Alta da Lapa, numa construção pequena e agradável, alocada nas proximidades de onde viveu o professor Ermano da Conceição, alfabetizador, patrono da meiga escolinha, que por sinal, foi amigo de Seu Ico. Durante o labor, conforme a oportunidade, até as crianças faziam roda para ouvir o querido Senhor Ico.
As lembranças daquele homem simples, vagueiam na memória de muitos pirenopolinos, pois sua presença e peripécias, contagiavam todos a sua volta. Quem foi estudante da referida escola, no período da atuação do exímio funcionário, com certeza preserva em mente, a hora do intervalo, ou melhor, a hora do recreio, momento esperado pela meninada, quando aquele meigo cidadão atribuía seu tempo para contar histórias e cantarolar canções populares da cultura goiana e brasileira.
Era praxe, dentre as brincadeiras tradicionais das décadas de 1980 e 1990, que por felícia não contavam com a interferência da tecnologia, rodear e ouvir o Seu Ico. Teodorico Pereira era astuto, além de prestar atenção no portão e no alambrado de tela que cercava a escola para o cuidado dos estudantes contra as interferências externas, ele ainda acompanhava as brincadeiras e prendia atenção de muitos com suas narrativas, anedotas e cantorias.
Seu Teodorico, falava de tudo, contava lendas, histórias sobre índios, sobre ouro e assombração, sobre a família Frota e outras, sobre a Festa do Divino, sobre as ruas da cidade e ainda sobre os morros que a cercam. No final de cada causo, o Seu Ico oportunizava uma música para enaltecer e alegrar os ouvintes, afinal, cantar e tocar gaita, eram complementos das artes daquele senhor.
Além de causos e histórias verdadeiras e inventadas, Seu Ico, ensinava sobre as plantas e suas aplicações, sobretudo, as plantas do Cerrado, pois mesmo residindo no ambiente urbano, o mato era o lugar que ele escolhia para passar o tempo.
Dentre os saberes de Seu Ico, tinha destaque o conhecimento popular das plantas do Cerrado, incluindo espécies nativas da Serra dos Pireneus. Entre as suas paixões declaradas, andar pelo Cerrado e nele colher frutos para comer e folhas para fazer chás designava uma imensa satisfação, o que podemos constatar no Curta-metragem de Ângelo Lima produzido em 2004, filme vencedor do prêmio de melhor produção goiana no VII FICA 2005 (SILVA, 2020, p.119).
O documentário citado acima, foi denominado Icologia, este retrata os saberes da personalidade descrita, seu contato e o rico conhecimento sobre as propriedades das plantas medicinais do Cerrado são enfatizados na produção. Na gravação, Seu Ico destaca: “O campo é a medicina natural. O remédio do campo é tão importante, mas tem que saber” (PEREIRA, 2004).
O breve relato sobre o Senhor Teodorico Pereira se associa com tantas outras vivências já ocorridas e que continuam ocorrendo nas terras do Cerrado. Histórias que marcam e ensinam, assim, como a de Zeca Brejeiro, descrita pelo professor e pesquisador Altair Sales Barbosa, que se compara ao Seu Ico, pelo legado e conhecimentos construídos. Conforme o pesquisador, Zeca Brejeiro era um:
Feroz trabalhador, inteligente e muito cheio das sapiências. Era mestre em seguir as desconfiadas uruçus. De suas colmeias, ele retirava, sem destruí-las, o mel para sua sobrevivência. Também conhecia os segredos dos vegetais. Era comum ver vaqueiros transeuntes parados no seu rancho, solicitando ervas para curar alguma doença malinada. Entretanto, sua maior virtude era o dom da música (BARBOSA, 2023, p. 113 e 114).
Outra comparação, procede também com a análise da narrativa do professor e pesquisador Ricardo Junior de Assis Fernandes Gonçalves, que relata sobre Rosa, uma mulher simples, que foi moradora do Cerrado e guardiã de muitos conhecimentos sobre plantas, as quais ela cultivava no seu próprio quintal tão bem cuidado. “No seu rosto estendia-se a expressão da simplicidade e da generosidade de uma mulher guardiã de tempos ancestrais da cultura sertaneja” (GONÇALVES, 2023, p.117).
Em tempos de grande degradação do Cerrado, as experiências repassadas pelos viventes deste território, nos exprime a importância de um povo que, entre os desafios resiste com seus costumes e tradições, junto ao próprio bioma que denota os sinais de consumição, mas que também segue resistindo. Essa resistência é expressa pelo professor e pesquisador Eguimar Felício Chaveiro, em seu conto O Burrinho. Ao tecer um diálogo com o amigo, que se apropria do conhecimento sobre o assunto e que ressalta no conto, em uma analogia, a resistência do Cerrado:
Olha, com o aprimoramento do carbono 14, eu posso lhe garantir: ele tem cerca de 13 mil anos de idade. Nesse tempo, ele acumulou culturas e saberes, como se aprimorou geneticamente para enfrentar o que estamos vendo agora, a estiagem prolongada. Ele tem a força que nasce e os braços longos entrelaçados com a Floresta Amazônica, com a Mata Atlântica, com a Caatinga, com os Pampas e com o Pantanal. Ele é um sistema biogeográfico. (CHAVEIRO, 2023, p. 122 e 123).
Podemos aplicar ainda uma conexão das abordagens já proferidas, sobre a cultura e os saberes acumulados do povo cerradeiro, por meio da reflexão do texto Natureza e saberes dos povos indígenas no Cerrado, no qual as pesquisadoras Sabrina Couto Miranda, Josana de Castro Peixoto e Poliene Soares dos Santos Bicalho, expõe a importância biológica, natural e cultural do bioma. Neste interim, as autoras atentam ainda sobre a situação atual de degradação do Cerrado e alertam para a necessidade de ações educativas em prol da conservação do que ainda resta do seu território.
Numa abordagem sobre o conhecimento etnobotânico repassados pelos povos indígenas do Cerrado, as autoras destacam:
No contexto da utilização dos recursos naturais desse bioma pelas populações humanas, é preciso levar em conta as relações socioculturais que estão diretamente envolvidas com a sua conservação e a importância da manutenção desse conhecimento (MIRANDA et al., 2023, p. 374).
Na contextualização e analogias proferidas, percebemos a importância da conservação do bioma Cerrado, no que tange os aspectos biológicos, naturais e culturais, com ressalva, os valores de um povo que tem a sua identidade registrada a partir da matriz indígena que habita as terras goianas desde tempos remotos. “Chegamos a este local por volta de doze mil anos atrás. O lugar era tão bonito que se assemelhava a um paraíso, por isso o denominamos Jardins das Plantas Tortas” (BARBOSA et al, 2014, p. 14).
Destarte, em respeito aos povos indígenas que outrora foram os pioneiros de toda esta terra, e em consideração as poucas etnias que ainda resistem através dos movimentos e lutas por direitos garantidos ainda recentes, diante do tempo de habitação do Cerrado, primamos pela conservação no contexto geral deste bioma enquanto cenário dos costumes e tradições que seguem perpetuando e alicerçando nas memórias. Neste sentido, Bicalho (2024) evidencia:
Contudo, ressalta que o movimento indígena na história sempre existiu, não se ignora que os povos indígenas do Brasil têm uma história secular de resistências e protagonismo diante das diferentes formas de colonização a que foram submetidos desde a chegada dos europeus. Goiás conta com três etnias sobreviventes na atualidade: os Iny-Karajas (karajá, Javaé e Xambioá); Tapuia do Corretão; e Âwa Ava Canoeiro. O que pouco se discute é o processo de luta e de resistência desses povos contra as invasões de seus territórios (BICALHO, 2024. p. 249-252).
Ao refletir sobre a colonização do Brasil, bem como os confrontos na fronteira Cerrado com as invasões dos territórios indígenas, podemos notar entre os males, a benfeitoria. Entre os embates houveram os encontros, pelos encontros somos o desenlace e carregamos a herança genética e cultural do processo. “Somos um povo complexo e diversificado, habitando nichos ecológicos diferentes em que se processam etnografias plurais” (BERTRAN, 2000, p. 15).
Na reflexão, podemos concluir que neste bioma resistente como um muar, em dias quentes ou frios, de setembro ou qualquer mês do ano, delimitados pelos períodos da chuva ou da seca, caracterizado pelo professor e pesquisador Sandro Dutra e Silva, no conto Setembro e o Linho das Almas, entre a morte que desperta, a vida continua.
No Cerrado pujante, tem continuidade a história de um povo tão pertinaz quanto seu habitat. Povo constituído por muitos experientes Zecas Brejeiros, cuidadores da fauna e da flora, por inúmeras Rosas, zeladoras de plantas e declamadoras de poesias e por tantos Icos, contadores de causos e encantadores de pessoas. Gente que marca com suas vivências, que demarca com o legado hereditário e identitário e que segue tecendo memórias.
REFERÊNCIAS
BARBOSA, Altair Sales. A Saga de Zeca Brejeiro. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, n. 33, p. 103-116, 2023.
BARBOSA, Altair Sales et al. O piar da juriti Pepena - Narrativa ecológica da ocupação humana do Cerrado. Goiânia: ed. PUC Goiás, 2014. 392p.
BICALHO, Poliene Soares dos Santos. O lugar de Goiás na história do movimento indígena (p. 247 a 265). In: Goiás + 300 Reflexão e Ressignificação: Povos originários. Goiânia, GO: Edições Goiás+300, 2023, 548p.
BERTRAN, Paulo. História da terra e do homem do Planalto Central: eco-história do Distrito Federal – do indígena ao colonizador. Brasília: Verano, 2000. 322p.
CHAVEIRO, Eguimar Felício. O Burrinho. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, n. 33, p.121-125, 2023.
GONÇALVES, Ricardo Junior de Assis Fernandes. O quintal de Rosa. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, n. 33, p.117-120, 2023.
MIRANDA, Sabrina do Colto et al. Natureza e saberes dos povos indígenas no Cerrado (p. 230 a 286). In: Goiás + 300 Reflexão e Ressignificação: Povos originários. Goiânia, GO: Edições Goiás+300, 2023, 548p.
PEREIRA, Teodorico. In: Icologia, 2004.
SILVA, Sandro Dutra. Setembro e o Linho das Almas. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, n. 33, p. 107-112, 2023.
SILVA, Sirlene Alves de. Sob a luz do luar: Natureza e religiosidade na Festa do Morro dos Pireneus/Pirenópolis-Go (1927-2019). Anápolis: TECCER/UEG, 2020 (Mestrado em Ciências sociais e Humanidades).

Sirlene Alves tem formação no curso de Magistério( 1998), possui graduação em Biologia pela Universidade Estadual de Goiás (2004), especialização para o Ensino de Biologia pela Universidade de Brasília (2008) e mestrado Ciências Sociais e Humanidades: Territórios e Expressões Culturais no Cerrado pela Universidade Estadual de Goiás (2020). Atualmente é professora de educação básica na Escola Estadual Santo Agostinho.




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