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CAOS CLIMÁTICO NO HOTSPOT: Vai fazer o que?

Márcio Júnior Pereira


Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

(Artigo 225 da Constituição Federal)




O Cerrado é um dos hotspots mundiais de biodiversidade (MYERS et al., 2000). A referida citação acumula na base de dados do Google Acadêmico um total de 37.302 citações até a data de publicação do presente texto. Todavia, ainda que numericamente entoada, essa máxima impacta de distintas formas as diferentes camadas da sociedade pelas quais atravessa. Certamente, não terá o mesmo impacto em três figuras sociais distintas. Tomemos como exemplo André, um acadêmico que, entre relatórios e solicitações de fomento para suas pesquisas, teve acesso à produção científica de décadas e capacitação para compreendê-las. André dorme poucas horas por noite, pega várias horas de ônibus para chegar à universidade e é movido pela esperança de dias melhores. Assim, entre papers e pesquisas em campo, ele almeja pela preservação do Cerrado.


Em segunda instância, imaginemos José, um cortador de cana que trabalha por diária, sendo remunerado de acordo com a sua produtividade na lavoura. José cresceu no campo e sabe bem reconhecer o Barbatimão. Ele sabe que a infusão da entrecasca da árvore cicatriza feridas, sejam elas suas ou das “criações” da roça. Todavia, ele não sabe que o Barbatimão tem um nome dado pela Ciência: Stryphnodendron adstringens, tampouco que ele foi descrito em 1910 por Frederick Vernon Coville. Acontece que José teve que largar os estudos logo cedo para trabalhar no campo. Ele também não aprendeu que a cana de açúcar veio de fora e que décadas mais tarde foi considerada a primeira grande empresa colonial agrícola europeia (Furtado, 1969). Mas José aprendeu bem a manejá-la após a queima.


Dado o cenário, iremos inserir aqui outra persona, a qual chamaremos de Estevam. Ele é um produtor de grãos em grandes extensões de terra em um município do interior goiano. Entretanto, Estevam mora na capital e periodicamente visita suas lavouras gerenciadas por colaboradores. Nunca em sua propriedade uma única árvore sequer foi derrubada sem a autorização dos órgãos ambientais competentes, e sem que todos os estudos exigidos pela legislação fossem criteriosamente executados.


De diferentes formas, André, José e Estevam talvez percebam que os vagalumes já não são mais vistos como antigamente. Entretanto, é possível que apenas André tenha ciência de que a perda de habitat, seguida da luz artificial noturna e do uso de pesticidas, são as ameaças mais graves para estes insetos, corroborando para o declínio populacional das espécies de vaga-lume no planeta (LEWIS et al., 2020). Aliado a isto, apesar do efeito das mudanças climáticas sobre estes insetos não ser totalmente conhecido, eles certamente serão ameaçados pela seca e pelo aumento do nível do mar (REED et al., 2020).


Ambos perceberam também que o tempo está estranho e as chuvas já são incertas, sendo perceptível que a temperatura se eleva a cada ano. Eles possivelmente observaram pela TV, por algum podcast ou pelo Instagram que o ano de 2023 bateu recordes de temperatura, sendo considerado o ano mais quente já registrado (WMO, 2023).

José dorme de janelas abertas para amenizar o calor, André abre a janela do ônibus lotado para que o ar possa circular melhor. Estevam, por sua vez, anda no carro do ano, com ar-condicionado, e da mesma forma, possui um aparelho de ar fixo no quarto, além de um móvel que possa circular por seu apartamento.


Para essa reflexão, não nos importa o mérito e o esforço de André, José e Estevam, mesmo porque, ainda que todos tenham se empenhado para alçar voos mais longos, eles não largaram do mesmo ponto de partida. O parâmetro que aqui importa é que ambos habitam o mesmo planeta, neste caso o mesmo país e também o mesmo Estado: André, José e Estevam habitam no Cerrado.


Contudo, eles não vivem no mesmo Cerrado! O Cerrado de André está sendo assassinado por práticas predatórias que visam sobretudo o lucro e que vêm sendo documentadas pela ciência há décadas. O Cerrado de José existe onde há barbatimão e vez ou outra aparece um vagalume, ainda que não mais como antigamente. No cerrado de José, as janelas têm de dormir escancaradas apesar dos mosquitos, pois o calor nos dormitórios da usina de cana-de-açúcar nessa época do ano é insuportável. O Cerrado de Estevam é grande, mas é muito pouco coberto por plantas nativas! Abundante nesse Cerrado são a soja e o milho, que apesar das adversidades foram melhorados para suportar e progredir fora do solo pátrio. Há também no Cerrado de Estevam, Imposto de Renda, esse muito possivelmente o Cerrado de José nunca ouviu falar.


Muitos são os dados acerca das alterações ambientais e seus impactos sobre o globo e as formas de vida que nele vivem! O mais recente relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas aponta que as atividades humanas causaram aumento inequívoco da temperatura do planeta, em razão da emissão de gases de efeito estufa, uso insustentável de energia e da terra, do estilo de vida e dos padrões de consumo e produção em todas as regiões. A temperatura da superfície global atingiu 1,1°C acima do registrado em 1850-1900 de 2011-2020.


Plantar árvores é possivelmente a primeira alternativa posta como solução às mudanças climáticas por grande parcela da população. Todavia, analisar o papel para a conservação que cada remanescente de vegetação soma e o quão protegido se encontra também é crucial! Contemplar a interdisciplinaridade e buscar aliar o desenvolvimento com manutenção dos ecossistemas é essencial. Transições serão necessárias, reconhecer o papel de cada engrenagem deste sistema é vital.


Conforme De-Marco (2023), áreas privadas onde os conflitos de uso da terra estão frequentemente em desacordo com os objetivos de conservação acomodam até 14,5% das espécies de vertebrados ameaçados, dado que se eleva para 25% quando se considera a distribuição do habitat nativo. A crucialidade de que as ações necessárias para proteção dos Cerrados sejam contempladas pela legislação é indispensável.


É clara a complexidade do debate. Entretanto, a grandeza de maior importância posta à mesa é que, se esse hotspot colapsar, sofreremos todos. Mas não igualmente, pois as adversidades decorrentes das mudanças climáticas infiltram em distintas intensidades as camadas sociais e os diferentes cerrados. Não foi o objetivo aqui trazer respostas, mas sim despertar questionamentos e impelir o debate. Diante desse cenário, qual é o seu cerrado? Que papel você desempenha? Volte ao subtítulo e se pergunte: e você?...

 

NOTAS


1. Articulação textual inspirada em: RITA VON HUNTY. “Tá rindo de quê?” Como manter o humor em tempos sem graça nenhuma. Disponível em: <https://gq.globo.com/Prazeres/Poder/Comportamento/noticia/2020/10/ta-rindo-de-que-como-manter-o-humor-em-tempos-sem-graca-nenhuma.html>. Acesso em: 25 jan. 2024.


REFERÊNCIAS


DE MARCO JR, Paulo et al. The value of private properties for the conservation of biodiversity in the Brazilian Cerrado. Science, v. 380, n. 6642, p. 298-301, 2023.


FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. Companhia das Letras, 2020.


IPCC. CLIMATE CHANGE 2023 Synthesis Report A Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change. [S.l: s.n.]. Disponível em: https://www.ipcc.ch/report/ar6/syr/downloads/report/IPCC_AR6_SYR_FullVolume.pdf. Acesso em: 25 jan. 2024.


LEWIS, Sara M. et al. A global perspective on firefly extinction threats. BioScience, v. 70, n. 2, p. 157-167, 2020.


MYERS, Norman et al. Biodiversity hotspots for conservation priorities. Nature, v. 403, n. 6772, p. 853-858, 2000.


WMO - World Meteorological Organization. Provisional State of the Global Climate in 2023. Disponível em: <https://wmo.int/publication-series/provisional-state-of-global-climate-2023>. Acesso em: 25 jan. 2024.


REED, J. Michael et al. Linking the seven forms of rarity to extinction threats and risk factors: an assessment of North American fireflies. Biodiversity and Conservation, v. 29, p. 57-75, 2020.



Márcio Júnior é Biólogo, mestrando em Ciências Sociais e Humanidades pelo Programa de Pós-Graduação em Territórios e Expressões Culturais no Cerrado, da Universidade Estadual de Goiás e integra o Núcleo de Pesquisa dos Saberes Tradicionais e Ambientais do Cerrado, NuSACER (TECCER-UEG). Suas pesquisas envolvem distintas vertentes que se relacionam com a flora nativa do Cerrado.


 
 
 

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