CAMINHOS RURAIS: memórias, afetos e resistência no turismo
- teccernusacer
- 3 de out. de 2023
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por Amanda de Sena

Imaginemos uma sala de aula com estudantes adultos e idosos, conversando sobre turismo, comumente associaríamos que essa cena a falas que apresentam descrições diversas sobre viagens realizadas, os desejos e planejamento das próximas, e sim, de fato houve essas trocas. De acordo com Souza (2006) o lazer desempenha papel fundamental na promoção da saúde física, psicológica e social dos idosos, já que o turismo tem conquistado cada vez mais adeptos nessa faixa etária, principalmente no Brasil, com sua vasta oferta de atrativos naturais, culturais e históricos, os idosos apreciam viajar e tem transformado isso em um hábito.
Contudo, vale também um olhar para um outro grupo desses alunos que apresentaram resistência ao falarem sobre o turismo, a questão de sair do lugar habitual desperta uma sensação desconfortável, o deslocamento exige questões físicas e emocionais. No entanto, essa resistência em relação ao turismo dissipou-se quando mencionamos o turismo rural. Para esse grupo específico, que inicialmente se opunha a viagens, o turismo rural parecia não se enquadrar num segmento específico de viagem. Era como se essa modalidade não os afastasse de suas rotinas cotidianas; pelo contrário, parecia trazê-los de volta a si mesmos. O turismo rural, de alguma forma, se assemelhava a um lar, repleto de afetos e memórias. Refletindo sobre isso, não é exatamente assim? Quem não possui recordações pessoais afetivas e familiares relacionadas ao campo e à terra?
O cenário social e político que podemos captar nas falas desses alunos que apresentam maior conexão com o turismo rural são os reflexos históricos da formação geopolítica e territorial do país, o êxodo rural e a formação dos grandes centros urbanos, como ao comentarem de forma afetiva e familiar sobre o contato com o meio rural, invocam cenas de tempos antigos. Especificamente no contexto do Cerrado, não precisamos pensar tão longe assim, Camarano e Abramovay (1999) indicam que o modelo predominante na expansão da fronteira agrícola no Centro-Oeste resultou em um esvaziamento demográfico significativo nas áreas rurais durante os anos 80. Esse padrão foi amplamente impulsionado pelo cultivo da soja no Cerrado, que recebeu estímulos não apenas por meio de pesquisas agrícolas, mas também por apoios de preços que abrangiam subsídios governamentais. Além disso, a tradição pecuária também contribuiu para a configuração de uma zona rural com atividades econômicas de baixa demanda por mão de obra. Como resultado, os autores apontam que quase metade (48,8%) da população rural do Centro-Oeste migrou durante os anos 80.
Gosch (2020) aborda de forma mais aprofundada a temática ao destacar as questões sociais e econômicas e consequentemente a exclusão sistemática, as famílias com menos renda que viviam no campo foram retiradas de suas pequenas propriedades para dar lugar a grandes fazendas voltadas para a produção de commodities[1]. Assim, o êxodo rural é uma das implicações do processo de ampliação da fronteira agrícola no Cerrado, essas circunstâncias ressaltam a grande desigualdade existente no Brasil em relação à distribuição de terras. Contudo, essas transformações que o território atravessou não apenas modificou a forma de trabalho e de produção, mas também a maneira de vida e ocupação dos povos cerradeiros. De acordo com Pelá e Mendonça (2010) essas pessoas que foram sendo expulsas do campo e migrando para centros urbanos, apesar de vivenciarem outras formas de trabalho e mudanças materiais, conservam em si suas práticas socioculturais e simbólicas, a partir de suas memórias, vivências e saudosismos nas quais estruturam suas percepções de mundo. As memórias pessoais desses alunos entrelaçam-se com o cenário social histórico e político que revela também caminhos de resistência. Ao compartilharem vivências e vínculo com o turismo rural, os alunos invocaram temas diversos que tangem a vivência da proximidade com o meio natural, ao falarem de maneira positiva desse segmento turístico comentaram sobre o modo de vida que tiveram, situações marcantes como os cantos dos pássaros, correr das águas, nascer do sol, os animais da fazenda, as comidas e as festividades, características de um Cerrado mais afetivo e do sertão que resiste a dominação do capital, como Inocêncio (2010) apresenta.
O que hoje constitui o Cerrado foi o ontem do sertanejo, que criava extensivamente o gado, cultivava o arroz, o feijão, o milho, a mandioca, a abóbora d’água para a subsistência diária; que se banhava no “corgo” após a “lida na roça”; os vários ambientes da casa de pau-a-pique, da reza, da festa e da “comilança” que acontecia no decorrer dos mutirões para “bater pasto”. Nesta perspectiva, o Cerrado foi sendo composto, decomposto e recomposto, permitindo e resistindo às estratégias de reprodução do capital (INOCÊNCIO, 2010, p. 46).
Outro fator que tange muito as memórias desses alunos é a questão da alimentação, das memórias gustativas afetivas, dos momentos compartilhados nas refeições e elaboração dos alimentos. Almeida (2017) argumenta como a questão da alimentação compreende áreas sociais, culturais que se inter-relacionam com o ambiental, territorial, ou seja, a cultura alimentar de um povo está intimamente ligada aos alimentos cultivados e consumidos por eles, certos sabores como o dendê na Bahia, o açaí na Amazônia, a bergamota no Rio Grande do Sul e o pequi no Cerrado afirmam a identidade alimentar de determinado território, que embora esteja se diluindo com a globalização, ainda confere territorialidade aos alimentos.
O ato de se alimentar é complexo, envolve a inter-relação entre o ser humano e a natureza, bem como suas diversas ramificações, o ato de comer revela como os seres humanos são organismos biológicos e entidades sociais. Os alimentos são essenciais para a sobrevivência física, mas também desempenham um papel importante na reprodução social, eles podem ser oferecidos como símbolos de amizade, gratidão ou até mesmo por interesse. Assim, a comida apresenta função social dos alimentos na expressão de sentimentos que contribuem para a socialização dos indivíduos como membros de sua comunidade. Sua função principal é a manutenção da estrutura social e, consequentemente, do sistema, sendo seu valor mais social do que nutritivo e, também, simbólico (ALMEIDA, 2017).
Seguindo essa linha, Santos (2005) defende que o gosto alimentar não é formado apenas por sua dimensão nutricional e biológica, os alimentos são uma categoria histórica, pois os padrões de hábitos e práticas alimentares estão ligados à dinâmica social. Comer não é apenas um ato nutricional, mas também um ato social, relacionado a costumes, protocolos, condutas e situações, ou seja, ainda de acordo com o autor, nenhum alimento é neutro, e o que se come é tão importante quanto o momento, o local, a forma e as pessoas com quem se compartilha a refeição. A cozinha desempenha assim um papel central nesse contexto, sendo um espaço onde os alimentos são elaborados, ganham sabor e significado, é um ambiente que envolve intimidade familiar, investimentos afetivos, simbólicos, estéticos e econômicos.
Na cozinha, prevalece a arte de elaborar os alimentos e de lhes dar sabor e sentido. Nela, há a intimidade familiar, os investimentos afetivos, simbólicos, estéticos e econômicos. Em seu interior, despontam as relações de gênero, de geração, a distribuição das atividades que traduzem uma relação de mundo, um espaço rico em relações sociais, fazendo com que a mesa se constitua, efetivamente, num ritual de comensalidade. A cozinha é, portanto, um espelho da sociedade, um microcosmo da sociedade, é a sua imagem. Em vez de falar em cozinha, é melhor falar em cozinhas, no plural, porque elas mudam, transformam-se graças às influências e aos intercâmbios entre as populações, graças aos novos produtos e alimentos, graças às circulações de mercadorias (SANTOS, 2005, p.21).
As falas desses alunos com a proximidade do campo e alimentação revelam também a percepção errônea tão comum de que cultura e natureza são categorias de estudo opostas, distantes entre si. Quando se analisa essa ótica na história da alimentação e a relação com o ser humano, Montanari (2008) aponta como essa dicotomia é fictícia, é por meio do ambiente natural que o ser humano elabora a cultura, desde ritos a mitos relacionados a produção de alimentos, colheitas, por exemplo. Ou seja, é possível perceber como a construção humana no aspecto cultural foi se formando junto com as percepções e vivências com a natureza.
A partir dessa perspectiva de comida como cultura, no contexto do Cerrado o conhecimento e a prática estão relacionados à culinária como um patrimônio alimentar da comunidade. Com elementos como instrumentos, ingredientes e técnicas que compõem o patrimônio alimentar, a cozinha do Cerrado é um resultado histórico das interações, construções e desconstruções entre diferentes grupos, como colonizadores, africanos escravizados e povos indígenas. Embora essas influências tenham se entrelaçado de maneira arbitrativa e díspar, elas constituíram, de maneira inconsciente, o que hoje conhecemos como cozinha ceratense (ANDRADE, 2023).
Andrade (2023) então tece reflexões acerca da cozinha cerratense ao invocar a ancestralidade dessa culinária e a sua habilidade em abrigar e desempenhar influência sobre as outras cozinhas brasileiras. Para tal, a autora apresenta alguns elementos característicos da cozinha cerratense, como os diversos apetitosos doces elaborados nos tachos, com o apoio das colheres de pau, demandavam várias horas no preparo, revela também o silenciamento das inumeráveis outras mulheres, doceiras e cozinheiras neste território, como ainda pouco se fala e valoriza-se o trabalho dessas mulheres.
O socar do pilão, o machucar dos temperos reflete a vivência de um povo a partir da produção de seus alimentos. Envolta de mistérios e encantos, a história da alimentação dos povos do Cerrado aponta inúmeros elementos ainda a serem desvendados e documentados (ANDRADE, 2023, p.10)
Outra característica da cultura da cozinha cerratense, de acordo com Andrade (2023), é a relação com o quintal, onde se cria a galinha caipira e outros animais, como o boi e porco, é também onde se seca a carne de sol. Além dos frutos tão característicos do bioma Cerrado, como pequi, cajuí, araticum, mangaba, cagaita e tantos outros que revelam a luta pela terra e a sobrevivência de uma vida digna e justa no Cerrado.
Por poder se falar tanto a partir das vivências afetivas dos idosos com o território cerratense e a relação com o turismo rural, é possível compreender como esse tipo de turismo para esses alunos está relacionado com aquilo que Gastal e Moesch (2007) apresentam como turista cidadão, que abrange a subjetividade do viver, ao se referir aos habitantes que estabelecem uma conexão especial com sua cidade durante seus momentos de lazer. Para esses turistas cidadãos, os elementos fixos da cidade deixam de ser desconhecidos e se tornam familiares, constroem uma relação de pertencimento e identificação com o território, compartilhando os códigos culturais e situando sua subjetividade em relação aos elementos presentes na vida urbana.
Quando Gastal e Moesch (2007) então argumentam que é possível fazer turismo dentro da própria cidade, do seu local habitual, percebemos como aqueles alunos que enxergam no turismo rural invocam a rotina da infância, da família, afetos e memórias. Como esses alunos compreendem que as experiências oferecidas pelo turismo rural já são suas velhas conhecidas e talvez por isso não reajam com resistência, o habitual que se mistura com o estranhamento, se torna leve e próximo ao retornar para si, ao olhar que dentro de sua cidade, as experiências com turismo rural transformam a percepção da paisagem, como o rural e o urbano se diluem e assim desperta sensações de pertencimento.
Talvez o que cause mais surpresa naquele grupo de alunos que não gostam de viajar, mas apresentam um sentimento de afetividade com um segmento do turismo, é que normalizamos as viagens como parte intrínseca do lazer, algo fora da rotina habitual, quando vemos pessoas que não compartilham dessa lógica ficamos impressionados. De acordo com Krippendorf (2009), a sociedade moderna compreende o turismo como fuga do cotidiano, reflexo da estrutura capitalista que vivemos, encontramos a dualidade do cotidiano e anticotidiano, essa última representa o turismo, nessa ótica, o ciclo de reconstituição do ser humano se faz presente, trabalhamos com o objetivo de viajar e saímos de férias como o objetivo de voltar a trabalhar de maneira melhor, mais revigorada. Nesse jogo, o turismo entra como forma de válvula de escape, uma terapia que estabiliza os dois lados da moeda.
Retomando o caso do grupo de alunos que demonstra resistência ao viajar, é possível perceber que, para eles, a rotina em si não requer uma fuga, escape para ser vivida e/ou suportada. Talvez seja dentro dessa rotina, que engloba os aspectos da história de cada um, que eles encontrem maior liberdade em viver. Mesmo quando são apresentadas oportunidades fora do seu atual cotidiano, o turismo rural é associado a uma parte essencial de sua identidade, ainda que seja por meio de memórias do passado. Essa conexão com suas raízes e vivências no Cerrado parece ser um elemento significativo na maneira como eles percebem e valorizam o turismo rural.
É mais comum pensarmos na morte que na velhice, essa fuga é o que talvez afaste a possibilidade de refletirmos mais a respeito de como a velhice é natural, e como cada pessoa que se encontra nesse momento conserva em si memórias e histórias que se relacionam com aspectos sociais e culturais. Beauvoir (2018) argumenta a velhice como irrefutável consequência da completa realização da existência, contudo, quando só compreendemos a vida no aspecto do valor produtivo econômico, os idosos são colocados na categoria da alteridade, do outro, perante a sociedade, e isso acarreta diversas formas de exclusão quando distanciamos da percepção da velhice como um estágio que todos nos lidaremos uma hora ou outra.
O fato de um homem nos últimos anos de sua vida não seja mais que um marginalizado evidencia o fracasso de nossa civilização: esta evidência nos deixaria engasgados se considerássemos os velhos como homens, com uma vida atrás de si, e não como cadáveres ambulantes. Os que denunciam esse sistema mutilador que é o nosso deveriam trazer a luz esse escândalo. É concentrando os esforços no destino dos mais desafortunados que se chega a abalar uma sociedade (BEAVOIR, 2018, p.12).
Aquele grupo de alunos revelaram tanto ao compreenderem o turismo rural como parte de sua vida, retiram do turismo aquela categoria comumente associada que proporciona distância de si mesmo, do dia a dia, ao apresentarem o turismo rural com afetos e memórias, se aproximam do turismo cidadão de Gastal e Moesch (2007), evidenciam que o lazer e o turismo não precisam estar no anticotidiano como Krippendorf (2009) apresenta.
E ao compartilharem relatos pessoais com o turismo rural, apresentaram como as comidas e seus sabores ficam mais realçados a partir dos momentos compartilhados especialmente no Cerrado, que perduram na memória de uma vida toda. Além de demonstrarem elementos da cozinha cerratense, de acordo com Andrade (2023) por meio da escrita, documentação, fotografia, culinária e o compartilhar de memórias da culinária do Cerrado, é possível contribuir para a conservação ambiental, a preservação dos saberes e a valorização da luta desses povos, assegurando a sabedoria ancestral.
Notas
[1] “Commodities são produtos de origem agropecuária ou de extração mineral, em estado bruto ou pequeno grau de industrialização, produzidos em larga escala e destinados ao comércio externo. Seus preços são determinados pela oferta e procura internacional da mercadoria. No Brasil, as principais commodities são o café, a soja, o trigo e o petróleo”(FIOCRUZ)
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Maria Geralda de. Para além das crenças sobre alimentos, comidas e sabores da natureza. Mercator (Fortaleza), v. 16, 2017.
ANDRADE, Thamyris. O Patrimônio alimentar dos povos tradicionais do cerrado: Ensaios sobre instrumentos, insumos, sabores e saberes da cozinha cerratense. Cenário: Revista Interdisciplinar em Turismo e Território, [S. l.], v. 10, n. 2, p. 172–190, 2023. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/revistacenario/article/view/38911. Acesso em: 13 jul. 2023.
BEAUVOIR, Simone. A velhice. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018.
CAMARANO, Ana Amélia; ABRAMOVAY, Ricardo. Êxodo rural, envelhecimento e masculinização no Brasil: panorama dos últimos 50 anos. Rio de Janeiro: IPEA, 1999.
GASTAL, Susana; MOESCH, Marutschka. Turismo, políticas públicas e cidadania. São Paulo: Aleph, 2007.
GOSCH, Marcelo Scolari. A criação dos assentamentos rurais no Brasil e seus desafios: algumas considerações sobre cerrado goiano. RP3-Revista de Pesquisa em Políticas Públicas, 2020.
INOCÊNCIO, Maria Erlan. O Prodecer e as tramas do poder na territorialização do capital no Cerrado. 2010.Tese (Doutorado em Geografia) Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal de Goiás. Goiânia, 2010.
KRIPPENDORF, Jost. Sociologia do Turismo: Para uma nova compreensão do lazer e das viagens. São Paulo: Aleph, 2009.
MONTANARI, Massimo. Comida como cultura. São Paulo: Editora Senac São Paulo,
2008.
PELÁ, Márcia; MENDONÇA, Marcelo Rodrigues. Cerrado goiano: encruzilhada de tempos e territórios em disputa. In: PELÁ, Márcia; CASTILHO, Denis (Orgs.). Cerrado: perspectivas e olhares. Goiânia: Editora Vieira, 2010.
SANTOS, Carlos Roberto Antunes dos. A alimentação e seu lugar na história: os tempos da memória gustativa. História: questões & debates, v. 42, n. 1, 2005.
SOUZA, Tatiana Roberta. Lazer, turismo e políticas públicas para a terceira idade. Revista Científica Eletrônica Turismo, v. 3, n. 4, p. 1-6, 2006.

Amanda de Sena é turismóloga e mestranda em Ciências Sociais e Humanidades pelo Programa de Pós-Graduação em Territórios e Expressões Culturais do Cerrado, da Universidade Estadual de Goiás e integra o Núcleo de Pesquisa dos Saberes Tradicionais e Ambientais do Cerrado, NuSACER (TECCER-UEG). Suas pesquisas se debruçam sobre políticas públicas e turismo, patrimônio cultural, ecologia de saberes e história das mulheres.
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3553678086183450
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