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AS PEQUENAS MORTES: O ORGASMO, O CÉSIO E A ESTÉTICA DA CATÁSTROFE

Valéria Costa do Espírito Santo Gomes


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Wesley Peres, em As Pequenas Mortes, oferece uma narrativa que pode desacomodar o leitor habituado à tranquilidade das convenções literárias. A começar pelo título, As Pequenas Mortes, faz uma clara referência à expressão francesa "La Petite Mort", que significa "pequena morte". No contexto da sexualidade, descreve a sensação pós-orgásmica de desligamento ou desmaio. Não se trata de uma morte única e definitiva, mas de múltiplas mortes, uma experiência que se assemelha a morte temporária e intensa, que é o orgasmo.

Essa ideia serve como uma lente para entender o protagonista, Felipe Werle, que busca orgasmos intensos como pequenas doses de morte cotidiana. Ao longo da narrativa, a leitura revela que, para ele, o orgasmo transcende o prazer, tornando-se um ensaio da destruição. Prazer e aniquilação andam juntos, confundindo-se com a própria morte. Essa fixação permeia toda a obra, onde as "pequenas mortes" que Felipe experimenta diariamente não são apenas de natureza sexual, mas profundamente existenciais.

A narrativa de Peres, lançada em 2013 é escrita em um fluxo caótico, um espelho da mente perturbada de seu protagonista, Felipe Werle. Músico em crise existencial, cético, paranoico confesso, Felipe nos guia por uma escrita irônica e crua que não se furta a confrontar tabus: suicídio, loucura, culpa, perda, vazio e um erotismo que beira a pornografia. Seus temas centrais são câncer, corpo, morte, música, sexo, erotismo, religiosidade e Ana, sua namorada, obsessões que o consomem.

 Aos 12 anos, Felipe Werle vivenciou o acidente do Césio 137 em Goiânia, em 1987, trauma que o convenceu de ter câncer, criando uma neurose que atravessa toda a narrativa. “Há perturbação. Ana e meu câncer. Sei disso. Tenho certeza. Fui contaminado pelo Césio. Como se sabe o Césio passeou de ônibus no bolso de várias pessoas.” (Peres, 2013, p. 83). Suas confissões, fruto de sete anos de terapia, são uma tentativa de exorcizar os próprios demônios.

O acidente com o Césio 137 é interpretado pelo personagem como um sacrifício religioso do Antigo Testamento, uma "oferta agradável ao senhor". Essa leitura mistura imagens bíblicas de culpa, punição e expiação para atribuir um sentido espiritual à tragédia. A narrativa descreve o acidente como uma ferida aberta, uma morte que persiste na memória coletiva. O Césio, que "contaminou" e perturbou o protagonista, manifesta-se em sua paranoia com o câncer, uma doença que, embora não apareça nos exames, ele insiste em ter ao longo de toda a história.

Felipe Werle é um narrador sarcástico, cujas descrições oscilam entre a crítica ácida aos outros e aos seus próprios impulsos, em uma longa divagação que nos deixa, por vezes, na dúvida sobre o que é delírio e o que é realidade. Em um trecho ele traz a relação com seu pai, que é descrito como um “homem desagradável”, mas com “algumas virtudes”. Ao mesmo tempo em que faz uma autoavaliação, assumindo-se também como um “homem desagradável”. A diferença, segundo ele, é que ele o é “sem fingir, sem manejar farpas”, especialmente no que se refere a “levar mulheres para a cama”.

Em uma sociedade obcecada pela performance, onde a todo momento somos compelidos a exibir o que sentimos e pensamos, a crueza sem filtro de Felipe Werle é perturbadora e também libertadora. Perturbadora porque, em seu abismo interno, suas dores, traumas e contradições, nos vemos refletidos nas sombras que tentamos esconder. Mas também é libertadora, pois alguém, através da literatura, nomeia o que mal ousávamos sentir ou articular.

A leitura de As Pequenas Mortes foge das narrativas comuns e não busca agradar, ela quer desenterrar e expor as obscuridades que habitam o inconsciente coletivo e individual. A linguagem de Peres organiza e desorganiza a memória e a história, dando voz à dor inominável, revelando que nossa própria história é, como a de Felipe Werle, inacabada, falha e desestruturada.

A crítica do personagem à religiosidade é tão visceral quanto seus outros temas. Para ele, a religião é confusa, contraditória e sua visão de Deus é iconoclasta, chegando a imaginá-lo de forma grotesca, como uma entidade que defecava um enorme cocô azul sobre a Catedral de Goiânia. (Peres, 2013). Essa imagem, chocante, reflete uma percepção de um Deus opressor, sádico, que deseja o apocalipse profetizado por Antônio Conselheiro. “Deus está morto o caralho! Deus não está morto, está é com o dedo enfiado no ** da gente. Sim, esse é o axioma básico de sua teologia pessoal e do qual Ana ri.” (Peres, 2013, p.71).

A religiosidade de Felipe é um filtro através da qual ele enxerga Goiânia pós-desastre: uma cidade marcada pelo pecado, castigo de um Deus destruidor que se manifesta como o "câncer azul de Goiânia". “Deus não é um criador, mas um destruidor. Encontrou o mundo pronto e não cansa de destruí-lo, de insuflar-lhe pequenas mortes em tudo e em cada coisa”. (Peres, 2013, p.53).

Sua visão da vida urbana é igualmente sombria. Goiânia, para ele, é um "tumor", um caos camuflado pela normalidade, com suas ruas "infectadas de carro". “Goiânia não é cidade das flores, Goiânia não é. Basta olhá-la lá da curva a-lá-goiânia, na BR-153, e já se vê um rizoma concentrado, um rizominha, um rizomúnculo. (Peres, 2013, p.38).

O trauma do Césio 137 se estende à própria “carne da cidade”, onde o ar parece contaminado e os corpos marcados pelo medo. A frase "Vinte anos depois custa às pessoas admitirem que o que não acontece, acontece,"(Peres, 2013, p. 47), encapsula a negação social diante da tragédia. Isso revela uma resistência humana em aceitar verdades incômodas, uma tendência a negar o óbvio ou a acreditar que o mal só atinge os outros, não a si mesmo.

A representação de Ana e outras mulheres em As Pequenas Mortes é um ponto essencial para entender a desumanização feminina. O protagonista reduz as mulheres a "objetos de desejo", "carne, cheiro, curvas, gesto", formas que tenta possuir para amar o próprio caos interior. Ana, descrita como uma obsessão e parceira de abismo, quase não possui voz, ela é uma projeção de seus traumas, feridas, lembranças e desejos reprimidos.


Entanto, é só Ana por perto e: angústia. O afeto fica branco, obrando, antienredamentos, desfazendo remendos, remoendo infâncias. Ana ao longe. Por perto, sinto solidão, sinto um excesso de amálgama faltando. Ana me traz com ela (sei lá por que) a merda da minha infância, a podridão seca da minha adolescência, o solipsismo de se ter carne e não saber o que fazer com ela. (Peres, 2013, p.59).


Tradicionalmente, os homens são socializados para desejar e controlar, não para a intimidade. Essa herança social os leva a buscar mulheres principalmente para o sexo, enquanto o vínculo, a conexão autêntica, a amizade, a lealdade, a confiança, o diálogo, o afeto e a parceria emocional, é, na maioria das vezes, reservada a outros homens.

No caso do Felipe Werle, essa norma social é intensificada por sua visão antropofágica sobre as mulheres. Somada à sua própria percepção de si, onde ele crê que Deus nenhum o salvará de ser a coisa que ele é (Peres, 2013), uma visão que transforma as mulheres em meras ausências, fantasmas que o oprimem. Essas figuras femininas, agora vazias, juntam-se ao césio, ao câncer, e às mortes do pai e do irmão, aprisionando-o em uma solidão neurótica e aguda, desprovida até mesmo de laços de amizade.

A figura de Leide das Neves é um dos pontos mais sensíveis e potentes do livro, e a forma como Peres a aborda desinstala qualquer tentativa de romantização da tragédia infantil. Leide, a menina que, aos 6 anos, apreciava comer com as mãos seu ovo com farinha (Peres,2013), atraída pelo "pó bonito" que era visível só no escuro, como mágica, se torna o rosto do sacrifício.


Leide das Neves na Cidade das Maravilhas. Às mil maravilhas, as mil partículas de farinha entre dentinhos, olhando para o pai que não para de falar, ela, nos seus longos 6 anos nunca que viu o pai falar daquele jeito enquanto suas moléculas começam a dizer não umas às outras e ela nem imagina [...] (Peres,2013,p.40)


A morte de Leide, consumada pelo "fogo" invisível do Césio, é para Felipe Werle um "odor agradável ao senhor", uma imolação, um sacrifício antigo em uma Goiânia que ele percebe como perversa e pecadora. O livro nos convida a ir além do obituário. A invisibilidade da morte de Leide, a forma como a sociedade e a imprensa da época lidaram com sua agonia individual, muitas vezes diluída na magnitude da tragédia coletiva, são questões centrais.

As Pequenas Mortes evidenciam a maneira como falhamos em lidar com a morte infantil, seja pela banalização ou pela ocultação da verdadeira dimensão do sofrimento. E a fusão da tragédia individual com uma dimensão quase bíblica é o cerne da narrativa transgressora de Wesley Peres. A descrição do enterro de Leide, em seu "caixão de chumbo, menina eviscerada", em companhia de "2000 pessoas compondo uma peça óssea na história", eleva a "pequena morte" da menina a um evento de proporções míticas e existenciais.


Leide, e não Maria Madalena. Nenhum Cristo por ali. Mas a mãe. Dela. A menina eviscerada dentro do caixão de chumbo. O corpo da mãe suado, encostado pelo sol, corpo de mãe, entre chumbo de caixão que guarda a morta eviscerada e pedra e cruz e concreto voando e pelo-sinal e o tudo e o nada pesando mais, pois que enlaçados vitupérios velhos e outros inaugurados só pra matar de novo a morta, só desterrar a morta já desterrada, eviscerar de novo a morta eviscerada. (Peres, 2013, p.51).


Desse modo, conforme destaca o mestre em História e doutor em Sociologia, Eliézer Cardoso de Oliveira, autor da obra Estética da Catástrofe: Cultura e Sensibilidade, sua análise sobre a representação das tragédias revela que, "mais ainda do que na pintura, as catástrofes tornaram-se objetos de representação literária”. (Oliveira, 2008, p. 57). Isso ocorre porque a literatura, diferentemente de outras formas de arte, consegue explorar não apenas a imagem visual, mas também a dimensão temporal, as emoções, as memórias, os sentidos e as subjetividades intrínsecas às experiências das pessoas afetadas por esses eventos.

Em momentos trágicos, a busca por sentido e consolo frequentemente direciona a sociedade à arte. Oliveira (2008) aponta que, independentemente de as catástrofes intensificarem a sensibilidade artística, elas certamente ampliam a visibilidade da arte. Essa observação sublinha a função vital da arte, não só como reflexo da dor, mas também como um guia que valida a experiência humana diante do desastre.

Catástrofe não é só um fato trágico, mas uma fonte de criação estética, critica, social e de construção da identidade. Para o doutor em Sociologia Eliézer, o “conceito básico para a análise estética da catástrofe é o sublime.” (Oliveira, 2008, p. 22). O sublime é aquilo que, mesmo causando temor, terror ou angústia, consegue também nos fascinar por sua força emocional, por sua grandiosidade ou por sua representação artística.

As catástrofes, embora sejam tragédias reais, podem se tornar sublimes quando são transformadas em arte ou memória, despertando sentimentos ambíguos que misturam medo, admiração e reflexão sobre a condição humana. Dependendo da estética adotada, a arte é capaz de representar as tragédias de maneiras diferentes. Catástrofes se tornam historicamente relevantes quando são narradas, porque através da arte o sofrimento pode ser transformado em reflexão crítica. É a arte que dá forma ao trauma, reconstrói, dá significado e enfrenta os conflitos históricos.


Utilizando um registro estético do sublime ou do grotesco, as diversas narrativas estéticas sobre as catástrofes conseguiram transformá-las em obras de arte; a maioria delas superou a dicotomia ingênua entre civilização e barbárie, entre povo e Estado, modernidade e atraso, ou no mínimo lidam com seriedade com essas contradições. (Oliveira, 2008, p. 22).


Assim sendo, As Pequenas Mortes, de Wesley Peres, é uma obra literária que explora as contradições humanas, as dores e as feridas abertas de uma sociedade marcada pelo trauma da tragédia. O autor rompe com a expectativa de conforto, expondo as profundezas e complexidades mais sombrias do desejo, da morte, da religiosidade adoecida e da memória coletiva. A obra alinha-se à Estética da Catástrofe: Sensibilidade e Cultura ao transcender o impacto de grandes tragédias e focar nas perdas individuais e silenciosas.

A literatura, dessa forma, revela-se um meio importante para elaborar e dar um novo sentido ao sofrimento resultante de catástrofes. Reforçando essa perspectiva, Oliveira (2008) defende que as catástrofes não podem ser ignoradas, pois elas atravessam a sensibilidade humana e, portanto, inevitavelmente surgem na literatura. É por essa razão que As Pequenas Mortes é uma obra necessária, ao tensionar os limites entre erotismo, morte e catástrofe nos obrigando a questionar não só a sociedade em que vivemos, mas também a forma que lidamos com nossos próprios abismos.




REFERÊNCIAS


OLIVEIRA, Eliezer Cardoso de. Estética da Catástrofe: Cultura e Sensibilidade. Goiânia: Ed. UCG, 2008.


PERES, Wesley. As Pequenas Mortes. Rio de Janeiro: Rocco, 2013.


LIMA, Alam da Silva. La petite mort: uma metanoia erótica pela estetização do pecado. 2020. Dissertação (Mestrado em Poéticas Visuais) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020. doi:10.11606/D.27.2020.tde-08032021-160311. Acesso em: 2025-05-23.





Valéria Costa do Espírito Santo Gomes
Valéria Costa do Espírito Santo Gomes

Valéria Costa do Espírito Santo Gomes é graduanda do quinto período de História na Universidade Estadual de Goiás (UEG). Tenho interesse em Teoria da História, anti-intelectualismo, Iluminismo, formação do pensamento crítico e a relação entre educação e consciência histórica.

 
 
 

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