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ARAGUAIA, O MARE NOSTRUM DO CERRADO

Atualizado: 5 de set. de 2023

por Maximiliano R. P. Corrêa


Naquele estradão deserto, uma boiada descia

Pras’ bandas do Araguaia pra fazer a travessia

O capataz era um velho de muita sabedoria

As ordens eram severas, e a peonada obedecia

Tião Carreiro e Pardinho, “Travessia do Araguaia”



Aqui, enquanto se lê, as canoas cruzam o rio com suas varas, remos, cabos, ganchos e forquilhas; as lavadeiras molham a barra das saias quarando as roupas nas pedras da margem; varas de pesca e redes tateiam seu leito cabalístico, que conta histórias de antes dos homens, a procura do antológico peixe, alimento sagrado; e o ingá, em uníssono com o ipê e as goiabeiras, fazem coro ao mexerico de suas águas... como imaginar a história do Cerrado sem a presença do Araguaia?

Como o mediterrâneo desbravado pelo historiador Fernand Braudel (2016), o Araguaia talvez seja o Mare Nostrum dos goianos, ponte de comunicação entre províncias – e posteriormente, estados – até meados do século XX, meio de subsistência para diversos povos originários e ribeirinhos, veia mãe da natureza goiana, a qual nutre do sul ao norte e mais recentemente, num passo mui similar à sua contraparte balcânica, espaço de turismo! Lugar também de muitas estórias, traquejos do povo, biografias indissociáveis de suas águas e mistérios medrados pelo imaginário humano. Homero, em sua Odisseia, gravava em rimas as lendas de seu povo, na figura de ciclopes e sereias, Scylas e Caríbdes, rés do Sol e feiticeiras, demonstrando não apenas a pluralidade do imaginário grego, mas o espanto causado pelo mar: como “os latinos diziam: ‘Louvai o mar, mas conservai-vos na margem” (Delumeau, 2009, 54).

Como o Araguaia para os cerradenses, entretanto, o Mediterrâneo, Mare Nostrum dos antigos, foi imprescindível para o desenvolvimento da história das sociedades que o circundavam e do Ocidente que lhe deve o legado. Além das inspirações poéticas que provocava, possuía utilidades práticas e indispensáveis, como a pesca, o comércio e mesmo a guerra. São levados então a desbravá-lo – por mais temido que fosse – povoando-o de monstros e propriedades divinas, fazendo sacrifícios para aplacar sua ira antes de embarcarem em suas naus e o dignificando em suas poesias épicas e mitos, como a Eneida, os Argonautas e tantos outros.

Levados pelo mesmo impulso, os cerradenses, principalmente os habitantes de sua margem, avançaram sobre o Araguaia, povoando com suas lendas e histórias, algumas já trazidas em seu arcabouço, outras ‘endêmicas’ da região. Embora o rio sempre fosse objeto de igual admiração – o “magnifico rio” conde de Castelnau, que esteve em Goiás em 1844 (Oliveira, Alves, Oliveira, 2018) e assim o descreveu – Jean Delumeau (2009, p. 61), em paráfrase, ao estudar o medo europeu do mar, lembra-nos que “todo um lado de nossa alma noturna’, explica G. Bachelard, ‘explica-se pelo mito da morte concebida como uma partida sobre a água”. O rio, nesse aspecto, é um símbolo por si só nas mentalidades da humanidade, ponte entre o mundo do cotidiano e o extraordinário, o sobrenatural, o Sagrado.

O Araguaia não é exceção. Pelo contrário, ao longo de minhas pesquisas sobre o folclore brasileiro, muitas foram os causos recolhidos às margens deste rio: caiporas, antas-cachorro ou onça-da-mão-torta, Arranca-Línguas, negos d’água, lobisomens e uma sequência de lendas que compõem uma lista em constante expansão. O boto-do-araguaia, animal endêmico do rio, não se transforma como seu parente byroniano do Amazonas, provavelmente pelo processo colonizador de São Paulo em relação ao sertão, como nota Câmara Cascudo, dificultando a verificação da teoria.


Os mitos de origem indígena foram divulgados pelos mestiços arrastados no delírio das “bandeiras”. Bororos e Gês não tiveram influência apreciável na formação dos mitos popularizados. Mais depressa se aclimataram nos chapadões “cerrados” o Lobisomem, a Mula-sem-cabeça, o Fogo-corredor. Os elementos povoadores levaram suas crendices e estas floresceram no esquecimento das primitivas e locais. O predomínio é dos mitos tupis e europeus. Sobre os mitos regionais não me foi possível recolher senão raros e fortuitos documentos. (CASCUDO, 2012, p. 19)

Assim, mesmo as lendas de origem indígena, como a caipora, são heranças do hibridismo cultural paulista iniciado no período de colonização das capitanias hereditárias. Ainda assim, apresentam-se como versões profundamente filtradas pelo imaginário cristão português, como é o caso do Pé-de-Garrafa, ente de grande estatura que assombra os capoeirões do Cerrado, do Vão do Paranã às intersecções do Mato Grosso com o Amazonas: segundo José Teixeira, a versão cabocla da lenda teria linhas tradicionais com o Basajaun do folclore basco, que como o Pé-de-Garrafa em versões corriqueiras da lenda possuiria apenas a perna esquerda finda numa pegada redonda que lhe denuncia a passagem. Nos vãos do Araguaia, Pé-de-Garrafa é presença oculta, nunca visto ou raramente (poucos são os relatos de visagens do bicho). Antes, sua voz bradando pelos capoeirões assombra o mateiro e o guia pro seio das matas, que o segue na crença de se tratar de um companheiro, ludibriado pela criatura que o faz perder as trilhas e a real noção de si mesmo.

Os folclores cristãos, nesse aspecto, são notórios pela fabulação de seres próprios da noite, do oculto e do terror. Tal configuração, numa análise elementar, deve-se à própria configuração da mitologia cristã pós-medieval: num universo criado e regido por um Deus único que já elencou em livro sagrado toda a sua criação, qualquer criatura de ordem e origem adversas é, por natureza, obra de sua contraparte, o Diabo.

Logo, diferentemente de outros folclores, como os dos nossos queridos antepassados mediterrâneos, repletos de faunos, centauros, fadas ou dos outros antepassados, originários dessa terra, com profusão de mitos de guerreiros se transformando em pássaros e virgens em flores, os folclores cristãos – no plural, pensando na variedade de folclores formalizados pelo catolicismo na América Latina e outros lugares do mundo – não apenas criam e reproduzem lendas de horror, como exponencializam as características dos seres descritos.

A noite do Araguaia traz ao imaginário ribeirinho um rincão de seres que, em descrição, seguem tal ritmo narrativo. Um dos causos recolhidos, sobre uma caipora que perseguiu dois tropeiros das margens do rio à sede da fazenda atirando-lhe pedras e gargalhando evidenciam a questão: quando finalmente alcançam a sede e olham para trás, dizem ver uma criatura ‘acocorada’ num pau da cerca, a assoviar e sorrir como o diabo. Naturalmente associada às matas e florestas, a caipora do Araguaia lança novas opções de análise sobre a lenda com relação ao elemento água, que vez por outra aparece em associação com a lenda.

Afonso d’Escragnolle-Taunay, entretanto, ao analisar as crenças fantásticas portuguesas sobre o mar e as matas brasileiras no período colonial, fala-nos do Caminho-do-Mar, monstro de São Paulo, popularizado em Portugal no início do século XIX por cartilhas e livrescos populares, contando sobre um monstro antropofágico de 12 palmos de altura, corpo coberto de pelos, garras curvas e dentes de javali, em alguns lugares chamado de ‘caipira’, pai das menores caiporas, que colocavam para cuidar dos rebanhos de porcos-do-mato. O Caminho-do-Mar, o Pé-de-Garrafa, a caipora e mesmo o amazonense Mapinguari possuem características não apenas em comum entre si, mas também com o rio, a ponte entre mundos, a qual sempre circundam, mas nunca cruzam, configurando ponto comum de salvaguarda para aqueles que contam haverem fugido dos monstros do imaginário brasileiro.

Outra lenda mui interessante que vela o imaginário do Araguaia é o Arranca-Línguas, que teve seu auge de relatos em 1937, ganhando as manchetes de Goiás e do Rio de Janeiro como “O King Kong Goiano”, primata de quatro metros de altura que mataria o gado a pancadas, extirpando suas línguas e se alimentando. De Aruanã à Ilha do Bananal reinou no imaginário popular, conforme notam Teixeira (1979) e Cascudo (2012) ao se debruçarem sobre a lenda. Revela, em essência, a capacidade dinâmica de adaptação do imaginário e do folclore, tendo seu ápice logo após a estreia de King Kong, de Merian C. Cooper e Ernest B. Schoedsack, em 1933. A lenda, pelo que aponta Teixeira (1979), é anterior ao filme; entretanto, é apenas após sua estreia que vem a configuração do monstro enquanto primata e comparação de sua estória com a versão cinematográfica explorada pela mídia.

Através dos processos híbridos entre as diferentes culturas basilares do lugar, o flumen nostrum do Cerrado povoou-se não apenas de pessoas, mas das crenças trazidas por elas. Ali, no leito do rio, repousam histórias de negos d’água, espíritos brincalhões e por vezes fatais que viram as embarcações quando ousam cruzar o rio. Em suas margens, o lobisomem, possivelmente a lenda europeia mais difundida no Brasil, ronda as taperas e casebres dos ribeirinhos, com suas orelhas balouçantes, arrombando portas e janelas, atacando quem encontra pelo caminho. No seio da mata que adentra, a onça-da-mão-torta, invulnerável e incansável perseguidora de caçadores que com ela tem o azar de encontrar, revela a imperiosidade e o horror do jaguar no imaginário do lugar.

De fato, tamanha é a importância do Araguaia para os cerrandenses, que relegando a ele especial atenção, o transformaram por si mesmo no personagem principal de suas histórias: não a fera ou o monstro; tampouco as caças hercúleas, das quais meu bisavô sempre tem dez ou vinte causos prontos a me contar; mas sim o rio, que carregando consigo tantas estórias, mantém-nas sempre renovadas no constante fluxo das águas, ainda que se mantenha o mesmo rio, Araguaia, Mare Nostrum do Cerrado.


REFERÊNCIAS


BRAUDEL, Fernand. O Mediterrâneo e o mundo mediterrâneo na época de Filipe II. 2 volumes. São Paulo: Edusp, 2016.


CASCUDO, Luís da Câmara. Geografia dos Mitos Brasileiros. São Paulo: Global, 2012.

DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente (1300-1800): uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.


HOMERO. Odisséia. Tra. Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Ediouro, 2009.


OLIVEIRA, Eliézer Cardoso de; ALVES, Carla Ediene da Silva; OLIVEIRA, Maria de Fátima. Entre o Sublime e o Belo: As Representações Estéticas Sobre o Rio Araguaia. HALAC –Historia Ambiental, Latinoamericana y Caribeña, v.8, n.1, 2018. p. 114-135.


TAUNAY, Afonso d’Escragnolle. Monstros e Monstrengos do Brasil: ensaio sobre a zoologia fantástica brasileira nos séculos XVII e XVIII. Organização de Mary del Priore. Coleção Retratos do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.


TEIXEIRA, José A. Folclore Goiano. Brasiliana, v. 306. São Paulo: Companhia Editora Nacional/MEC, 1979.


Maximiliano Corrêa é mestrando em Ciências Sociais e Humanidades pelo Programa de Pós-Graduação em Territórios e Expressões Culturais do Cerrado, da Universidade Estadual de Goiás e coordenador do Núcleo de Pesquisa dos Saberes Tradicionais e Ambientais do Cerrado, NuSACER (TECCER-UEG). Suas pesquisas se debruçam sobre folclore, história das mentalidades e cultura popular, em especial o e-folclore, próprio do ambiente digital.


Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8577820500975317

 
 
 

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