A PRIMEIRA ÓPERA GOIANA “A ÐÉCIMA QUARTA ESTAÇÃO”DE MIGUEL JORGE E ESTERCIO MARQUEZ
- teccernusacer
- 14 de mar. de 2024
- 5 min de leitura
Atualizado: 7 de ago. de 2024
Essas pedras sabem o ruído de meus passos
(Miguel Jorge)

No seu sentido estético, a tragédia representa a incorporação dos limites da existência humana na arte: o sublime pode ser contemplado por olhos humanos, enquanto o belo e o grotesco podem gerar êxtase. No teatro e na literatura são incorporados espíritos românticos, vingativos, piedosos entre outros sentidos, que tornam as personagens humanas. No entanto, a arte não é apenas uma interpretação ou visão da realidade, muitas vezes é a própria realidade, porém narrada pelo lírico ou pela poesia, ou ambos.
A ópera é um meio para a transmissão de valores e narração de fatos e acontecimentos por meio de frases cantadas. No Brasil as primeiras apresentações de ópera chegaram com a colonização portuguesa, a primeira ópera de produção brasileira foi “A noite de São João” de José de Alencar e música de Elias Álvares Lobo no ano de 1860, enquanto a primeira ópera de produção goiana foi realizada nos dias 1 e 2 de outubro de 2019 na abertura das comemorações do aniversário da capital, Goiânia, intitulada A décima quarta estação, com música de Estércio Marquez e libreto de Miguel Jorge, baseado em seu conto homônimo. A apresentação da primeira ópera de produção genuinamente goiana, constitui um grande marco cultural para o estado e para a música erudita.
Apresentada em Goiânia nos dias 1 e 2 de outubro de 2019, a ópera não apenas se destaca como a primeira ópera de produção goiana, mas também como uma expressão artística rica, que tece uma intrincada relação entre tradição e modernidade. A obra foi inspirada no conto homônimo de Miguel Jorge, que narra a história de Antero, um farmacêutico com aspirações humanitárias e políticas da cidade de Catalão, que foi preso e morto após ser acusado como mandante do assassinato de um fazendeiro rico da região. Apesar de ser bem-quisto por boa parte da população, Antero foi tirado da prisão por jagunços e alguns populares da cidade, arrastado e linchado pelas ruas, onde morreu. Devido a forma como deu a sua morte, religiosos da cidade atribuíram a ele acontecimentos sobrenaturais ocorridos nas redondezas, e passaram a considerá-lo um “santo” popular, o que fez com que Antero se tornasse parte da cultura de Catalão, sendo posteriormente o tema da primeira ópera goiana.
A tradição em A Décima Quarta Estação encontra suas raízes na história e nas características culturais de Goiás. A obra é um eco das tradições históricas, como o coronelismo e o catolicismo popular, elementos que permeiam a história do estado goiano. A vinculação da morte de Antero com a Via Sacra, relação que motiva o título da obra, revela não apenas uma tradição cristã profunda, mas também a forma como a cultura local incorpora e interpreta eventos trágicos. Ao transpor o conto para uma ópera, ocorre uma transfiguração da tradição em uma expressão modernista. O uso do formato operístico em si é um desvio das formas artísticas tradicionais de Goiás. A ópera, por sua natureza, transcende a narrativa e envolve o público por meio de uma combinação de música, drama e elementos visuais.
A obra de Miguel Jorge carrega um grande sentido simbólico para pensar a história de Goiás. Os documentos culturais que, esteticamente ou teoricamente, criticam a modernidade revelam a barbárie em seu âmago. A tragédia reflete as dinâmicas sociais contemporâneas nas obras de Miguel Jorge. Conforme Benjamin afirmou: "Não existe
documento cultural que não seja também documento de barbárie. E, assim como ele não pode se libertar da barbárie, o processo histórico em que transita de um para outro também não pode" (BENJAMIN, 2016: p.13). Em outras palavras, ao aplicar esse aforismo ao contexto da obra de Miguel Jorge, percebe-se que a barbárie está entranhada na história de Goiás, caracterizada pelo coronelismo e pelo crescimento urbano. Quando o poético se faz lírico na ópera, pode-se interpretar que junto com o som da música é criado um êxtase estético que a magnitude da arte incorpora, para satisfazer os sentidos humanos dos observadores do drama.
A tragédia de Miguel Jorge na literatura carrega um esplendor poético e retórico, no entanto, com o lírico e a música, é agregado mais riqueza à apresentação. A escolha de palavras, a estrutura do diálogo e a ênfase em temas contemporâneos revelam uma voz literária que não teme desafiar convenções. A linguagem moderna contrasta, mas também se funde, com a tradição religiosa e social, proporcionando uma perspectiva única e localizada. Enquanto Estércio Marquez, ao compor a música, incorpora elementos modernistas, afastando-se das estruturas convencionais. A fusão de harmonias dissonantes, ritmos ousados e experimentação tonal reflete uma ruptura com as tradições musicais clássicas. Essa escolha estilística não apenas atualiza a obra para os padrões modernos da música erudita, mas também contribui para a atmosfera intensa e dramática da ópera.
A modernidade que veio a Goiás com a criação de Goiânia, trouxe o movimento artístico do modernismo. A busca por novos horizontes dos literatos goianos se deparou com a tradição do coronelismo e da sociedade rural, em que foram refletidos os problemas sociais do contexto agrário goiano através de novos quadros culturais. Elementos visuais, cenários e figurinos, ao incorporarem aspectos modernos, criam uma estética que reflete tanto a riqueza da história quanto a contemporaneidade. A utilização de tecnologia na projeção de imagens, iluminação e efeitos sonoros, todos contribuem para a atmosfera moderna da performance. No entanto, essa modernização não ocorre sem desafios. A tensão entre tradição e modernidade na ópera reflete os conflitos culturais e sociais presentes em Goiás. A narrativa do linchamento de Antero confronta diretamente o conservadorismo arraigado na tradição, enquanto a expressão artística moderna desafia as expectativas estabelecidas.
A modernidade se apresenta como um fato inevitável: a racionalização da vida do indivíduo em um contexto de progresso. O colapso do tradicionalismo deve ser colocado como pauta para pensar o fato, entretanto, não significa necessariamente que este acabará por completo, e o novo destruir inteiramente a existência do velho. A mentalidade desse mesmo indivíduo moderno, pode se manter tradicionalista em vários sentidos, gerando movimentos de reação. O histórico de ocupação violenta do território de Goiás, inspirou as principais obras de cultura erudita como releituras estéticas de grandes tragédias do estado, a exemplo, O Tronco de Bernardo Élis e Rua 57 de Siron Franco. A ópera A Décima Quarta Estação emerge como um testemunho da capacidade de Goiás de harmonizar tradição e modernidade. Ao trazer para o centro do palco uma narrativa enraizada na história local e ao expressá-la através de uma forma artística tão contemporânea como a ópera moderna, a obra transcende as fronteiras temporais e geográficas. Essa síntese única de tradição e modernidade não apenas enriquece a cena cultural goiana, mas também contribui para um diálogo mais amplo sobre como as expressões artísticas podem ser veículos de transformação e renovação cultural.
REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter, 1892-1940. O anjo da história. Organização e tradução de João Barrento. – 2. ed. ;1. reimp. – Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016. – (Filô/Benjamin)
JORGE, MIGUEL. A Décima Quarta Estação. In: JORGE, MIGUEL. Avarmas. São Paulo-SP: Editora Ática, 1978. P. 19-27.
Teatro Goiânia recebe montagem da ópera A Décima Quarta Estação. Secretaria de cultura do estado. 1 de outubro de 2019. Disponível em: <<www.cultura.go.gov.br/noticias/2310-teatro-goiânia-recebe-montagem-da-ópera-a-décima-quarta-estação.html>>. Acesso em 05/07/2023.
TELES, Gilberto Mendonça. Estudos Goianos II — A crítica e o princípio do prazer. Goiânia: Editora da UFG, 1995.

Rafaela Souza é mestranda em Ciências Sociais e Humanidades pelo Programa de Pós-Graduação em Territórios e Expressões Culturais do Cerrado, da Universidade Estadual de Goiás e integra o Núcleo de Pesquisa dos Saberes Tradicionais e Ambientais do Cerrado, NuSACER (TECCER-UEG). Suas pesquisas se debruçam sobre ópera e música clássica em Goiás.
Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/4765743410595879
UAU, este breve texto é uma joia literária!
Que tema interessante, com certeza um estudo valioso, obrigado por compartilharem!
Meus parabéns a senhorita Rafaela!