A MORTE PEDE CARONA: as cruzes de beira de estrada e seus aspectos
- teccernusacer
- 19 de set. de 2023
- 6 min de leitura
por Renner Patrick Vilela
“Morte, que talvez, seja o segredo dessa vida.”
Raul Seixas

Quem observar com certa atenção as margens das rodovias goianas vai encontrar um elemento macabro e inusitado: cruzes que demarcam o local em que houve uma morte violenta. Essa prática, que pertence a uma longa tradição do catolicismo popular brasileiro, faz com que ainda hoje, apesar das restrições legais a construções não autorizadas nas margens das rodovias, muitas dessas cruzes ainda estejam presentes nas rodovias do estado de Goiás.
Erguidas com cuidado às margens das estradas, elas assinalam, muitas vezes, locais onde houveram acidentes, servindo como um tributo àqueles que partiram de forma súbita e inesperada, se erguendo não apenas como uma homenagem, mas como guardiãs silenciosas da tragédia, sustentando a lembrança de vidas interrompidas bruscamente, e alertando os motoristas para os riscos daquela rodovia.
Além disso, ali, à beira das estradas goianas, essas cruzes se tornam um ponto de conexão entre os reinos dos vivos e dos mortos, um portal através do qual o divino e o terreno se encontram. Elas carregam em si o peso das histórias não contadas e das lágrimas derramadas, servindo como testemunhas silenciosas da frágil existência humana.

Esses aspectos conferem às cruzes de beira de estrada uma série de análises possíveis. As cruzes podem ser analisadas pelo seu aspecto histórico e cultural, onde ela incorpora a ambiguidade que os seres humanos imputam ao corpo morto onde, ao mesmo tempo que a morte da pessoa querida precisa ser relembrada com alguma construção material - uma lápide no cemitério, um memorial, ou uma simples cruz na beira da estrada -, o lugar em que ocorreu a morte ou o local em que o corpo está sepultado é objeto de tabus, marcado como local de morada de espíritos maus e assombrações. Na cultura popular goiana, entre as décadas de 1950 e 1960, era bastante comum colocar as cruzes nas beiras das estradas para evitar que o espírito do falecido não ficasse perambulando pelo local de sua morte
Porém, além de seu aspecto histórico e cultural, as cruzes de beira de estrada também podem ser analisadas por seus aspectos monumentários. A ideia de se construir monumentos para relembrar seus mortos, por sua vez, é tão antiga quanto os próprios ritos de sepultamento. As próprias pirâmides do Egito são grandes monumentos fúnebres. Durante um grande período de tempo da história da humanidade, os monumentos foram utilizados para relembrar a morte ou os grandes feitos de grandes homens, raramente sendo utilizados para manter viva a memória de homens comuns. Com o passar dos anos, no entanto, essa característica foi sendo alterada, e os monumentos, mesmo que simples, como lápides de cemitérios, mausoléus ou até mesmo o objeto estudado nessa pesquisa, a cruz de beira de estrada, foram sendo incorporados na cultura popular e passando a serem utilizados para marcar o local da morte ou do enterro dos entes queridos. O historiador francês Phillipe Arriés (1977) aponta o momento em que se volta a utilizar os monumentos como marcações de túmulos, dizendo que "do século XIII ao XVII tornar-se-á um hábito cada vez mais frequente designar, por uma inscrição, uma imagem pintada ou um monumento, a imagem precisa da sepultura ou apenas sua proximidade" (ARRIÈS, 1977).
O doutor em Sociologia Eliezer Cardoso de Oliveira aponta em seu artigo “A Monumentalização da Dor” (2017), que “Os monumentos são importantes depósitos de representações coletivas de um povo, lugares de memória...” e “O monumento remete ao passado, mas a sua intencionalidade está direcionada ao futuro, como muito bem afirmou Alois Riegl (2006, p.43)”. As cruzes de beira de estrada, logicamente não são monumentos clássicos, como aqueles situados nas praças e parques das cidades, ou até mesmo as lápides e mausoléus mencionados anteriormente. Mas elas contemplam as principais definições de monumento que foram propostas por Françoise Choay (2006), no livro Alegoria do patrimônio, uma vez que elas têm visibilidade pública (maior até do que muitos monumentos), estando presentes em rodovias, espalhadas por todo o país. O seu significado cultural é claro para a maioria dos expectadores, ou seja, os que as olham sabem que ali houve um acidente com vítima fatal, e ela tem a função de lembrar algo, nesse caso a pessoa vitimada pelo acidente.
Não custa ressaltar que o desejo de memória (Halbwachs, 2003, Norá, 1993; Polack, 1998) é o principal mote para a construção de monumentos. Elas também possuem elementos estéticos, o que demonstra haver um cuidado e uma tentativa de embelezamento por parte de quem a coloca, seja por meio da escolha do material, como madeira ou metal, seja pelo uso de elementos decorativos, como terços, imagens de santos e flores. Quando se percorre as rodovias goianas, é fácil de observar a diversidade de aspectos estéticos presentes nas cruzes. Mas qual seria a categoria estética mais adequada para se analisar as cruzes? O aspecto mais importante desses artefatos é o seu caráter macabro, ou seja, eles surgiram a partir da morte de alguém. Isso não pode ser desconsiderado quando da análise estética, já que, inevitavelmente, as preconcepções dos seres humanos sobre a morte influenciam na leitura estética.

Como é possível observar na fotografia, registrada na GO-010, próxima ao município de Leopoldo de Bulhões mesmo que já tenham sido apagados pelos efeitos do tempo, há a intenção de embelezamento da cruz, seja pelo azulejo já desbotado presente em sua base, os ramos secos que já foram flores, as inscrições em um azul, já apagado, e até mesmo o formato da cruz: a cruz latina. Mesmo que durante a minha pesquisa de em busca das cruzes eu pude encontrar cruzes em formato grego, onde a madeira horizontal está mais ao centro da vertical, a grande maioria das cruzes presentes nas rodovias goianas é do formato latino, muito utilizado no catolicismo apostólico romano. Segundo Azevedo (2009)
Cruz Latina– Braços mais curtos e deslocados, supõe-se ser esta a forma histórica da cruz de Cristo, usada na representação da crucificação e do crucifixo. Por seus ornamentos laterais com arvores pode ser entendida como o local onde se cruzam o caminho dos mortos e dos vivos. A cruz pode também ser interpretada como um divisor de águas da vida e da morte. (AZEVEDO apud CHARÃO, 2009, p. 6)
A preferência dos goianos pela cruz latina nas cruzes de beira de estrada é um reflexo da forte influência do catolicismo apostólico romano na cultura da região. Essa escolha não apenas reflete a fé católica predominante no Brasil, mas também ressoa com a forma como o catolicismo é praticado de maneira popular e pessoal no interior de Goiás. A cruz latina, como símbolo central do cristianismo, é facilmente identificável e acessível, tornando-se um meio eficaz de homenagear os falecidos e lembrar as tragédias nas estradas, independentemente do nível de conhecimento teológico das pessoas. É um testemunho da profunda relação entre religião e cultura na vida cotidiana e nas tradições populares da região.
E, embora tenham elementos estéticos que lhes imputam uma certa beleza, as cruzes causam assombro, melancolia e consternação. Vários teóricos, dentre eles Edmund Burke (1993), associaram esses sentimentos ao sublime. Ao referir a essa categoria, ele afirma que "o medo ou o terror, que é uma percepção da dor ou da morte, manifesta-se exatamente pelos mesmos efeitos, com uma violência proporcional à proximidade da causa e à fragilidade do indivíduo" (BURKE, p.137).
Inegavelmente, as cruzes de beira de estrada constituem uma representação estética da percepção da morte, sendo mais um dos aspectos possíveis de serem estudados nesse singelo objeto. É visível, no entanto, que no avanço da modernização das cidades e estradas, durante a construção, pavimentação e duplicação das rodovias, muitas dessas cruzes foram destruídas, fazendo com que seja cada mais difícil encontrá-las. Contudo, no rastro poeirento das estradas, elas persistem como testemunhas silenciosas da fragilidade humana e da passagem do tempo. As cruzes transcendem a sua natureza simples de marcos de tragédias para se tornarem eloquentes símbolos da nossa conexão com o divino, da nossa compaixão diante da morte e da nossa capacidade de manter vivas as memórias daqueles que partiram. A sua presença, ainda que rarefeita, é um lembrete de que, no coração da modernidade acelerada, há um lugar para a reflexão tranquila, para a memória afetuosa e para a contemplação do mistério da vida e da morte. Estas cruzes de beira de estrada, mais do que monumentos, são vestígios da nossa humanidade compartilhada, e nelas encontramos a beleza na simplicidade e a solenidade no silêncio.
REFERÊNCIAS
ARIÈS, Philippe. História da Morte no Ocidente. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira,
2017.
AZEVEDO. Luana Barros de. Uma cruz na beira do caminho: o imaginário jardinense sobre as cruzes de uma estrada. Monografia (Curso de História). UFRN, 2014.
BURKE, Edmund. Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo. Campinas: Papirus, 1993.
CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Unesp, 2006.
POLLACK, Michael. Memória, Esquecimento, Silencio. In. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15.

Renner Patrick é historiador e mestrando em Ciências Sociais e Humanidades pelo Programa de Pós-Graduação em Territórios e Expressões Culturais do Cerrado, da Universidade Estadual de Goiás e integra o Núcleo de Pesquisa dos Saberes Tradicionais e Ambientais do Cerrado, NuSACER (TECCER-UEG). Suas pesquisas se debruçam sobre a História das Mentalidades e História Cultural, em especial os estudos sobre a morte, religiosidade, arte fúnebre , monumentos e memória.
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/2481950473438600
Comments